O jogo

OPINIÃO24.04.202004:00

Pode haver futebol sem adeptos? Pode. Não é, naturalmente, a mesma coisa, mas pode! Já sabemos que o futebol sem adeptos é futebol sem alma. O futebol sem adeptos não é futebol, no sentido da paixão e das emoções. Sem adeptos, o futebol é apenas um jogo. Um simples jogo. Em todo o caso, e em rigor, pode evidentemente haver futebol sem adeptos.

Mesmo este futebol absolutamente industrializado e televisivo, completamente mediatizado e mercantilizado, de que tanto gostamos e parece que gostamos cada vez mais, pode existir sem adeptos, como está provado sempre que o jogo, seja lá por que razão for, se faz à porta fechada. Não estão lá os adeptos mas ele, o futebol, joga-se na mesma.

O que não pode é haver futebol sem jogadores. Isso é que não pode. Sem jogadores não há jogo e não havendo jogo deixam de fazer sentido os adeptos. Isso serve para o futebol como serve para qualquer modalidade desportiva, para qualquer competição, para qualquer espetáculo de paixão e de emoções. Sem jogadores, sem atletas, sem artistas, não há espetáculo!

E por isso, meus caros, não percam de vista, um segundo que seja, o cuidado que deverá ter-se com os jogadores no meio de toda esta ambição (legítima e de interesses financeiramente legítimos) de fazer regressar as competições profissionais de futebol, porque é de futebol que aqui, agora, se trata.

E como sem jogadores não há jogo - e quem diz jogadores, diz, naturalmente, treinadores, profissionais da área médica ou física, técnicos de equipamentos, equipas de arbitragem, e demais auxiliares exigidos num jogo de uma competição profissional -, o melhor mesmo é cuidar-se de perceber que serão eles a ter, por último, o poder de decidir em que circunstâncias, sob que normas, avaliação e proteção e com que cuidados, aceitarão correr o risco, por menor que seja, de voltar a competir.
Sejamos claros: estes campeonatos, se forem retomados, não terão duas partes. Estes campeonatos serão… um campeonato até à interrupção, e outro campeonato, nunca antes jogado, um campeonato totalmente diferente, jogado em condições completamente diferentes, um outro campeonato, portanto, a partir do momento em que a competição venha (como parece cada vez mais provável) a regressar.

Não sei, ninguém o sabe ainda, se a ideia é retomar as competições fazendo jogos num conjunto restrito de campos (a tal ideia, já falada, da concentração das equipas numa só região do País); não sei se a ideia é jogar em estádios grandes (Dragão, Luz, Alvalade) ou estádios pequenos. Dir-se-á que isso é o menos. Talvez seja.

Mas as condições em que uma competição se disputa serão sempre fundamentais para assegurar a verdade dessa competição. Não é a mesma coisa as equipas terem jogado 20 jornadas em determinado cenário e em determinadas circunstâncias, e jogarem agora 10 jornadas noutro cenário e noutras circunstâncias, tão diferentes.
Compreendo, naturalmente - já para não falar dos legítimos interesses de todas as organizações do futebol - a vontade de fazer regressar as competições. Gosto tanto de futebol como todos os que mais gostam de futebol e creio que o regresso - em segurança - do futebol poderá sempre ser um bem para a saúde mental de todos os que, como eu, gostam de futebol, mesmo tendo em conta que iremos (se o futebol regressar) ver um futebol muito diferente do futebol de que realmente gostamos. Percebendo isso, creio, porém, que muitos concordarão que o ideal seria, na verdade, não voltar a jogar-se esta época, passar-lhe uma borracha por cima e preparar com cabeça, tronco e membros a nova, a jogar… numa completamente nova realidade.

Querendo os responsáveis, e todos os mais interessados, o regresso da competição, não posso então deixar de reafirmar a opinião de que o futebol só pode mesmo regressar garantindo-se a saúde de todos os que farão parte de cada jogo (La Palisse não diria melhor, eu sei?...), mesmo que o jogo venha a ser (como é certo) à porta fechada.

Creio não valer a pena andar-se a discutir em cima de outros cenários que não sejam os definidos pelas autoridades de saúde, critérios esses que suportem, por outro lado, todo o trabalho que imagino estar a ser desenvolvido pelas autoridades (e sumidades) do futebol, apesar de não se conhecer ainda qualquer solução, e serem ainda muitíssimo mais as dúvidas do que as respostas.

O que julgo que valerá a pena, isso sim, é tomar-se a devida, e particular, atenção ao documento que o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol emitiu esta quinta-feira, a que deu o nome de «contributos do sindicato».
Não vou, evidentemente, reproduzir aqui o documento.
Apenas destacar alguns dos pontos que tive oportunidade de ler, como certamente a tiveram todos os responsáveis do futebol português.

Por exemplo, a questão da capacidade (e eficácia) na realização de testes, mais os respetivos protocolos de vigilância, planeamento, segurança e monitorização para todos os envolvidos na competição, a questão das viagens e alojamento, o seguro dos atletas perante a nova realidade, as condições para uma indispensável mini pré-época, já para não falar na desigualdade com que cada clube/SAD tratará, em particular, do ponto de vista psicológico (tão ou mais importante, neste caso, do que a aptidão física para a competição) cada um dos seus atletas, natural e compreensivelmente muito mais sensíveis ao receio e até ao medo de estar a jogar não apenas um jogo mas a própria vida e a vida das famílias.

Isso, meus caros, não se resolve certamente criando ambientes de conflito ou de críticas como as que o presidente do FC Porto teve o desplante de lançar sobre o sindicato dos jogadores como se o sindicato dos jogadores não tivesse de estar (como está, e bem), com todo o sentido da responsabilidade, preocupado com tudo aquilo que diz respeito aos jogadores.

Sou dos que acredito que os jogadores querem voltar rapidamente a jogar. Mas não quererão (nem deverão) regressar a qualquer preço.
Obrigá-los a isso é que seria inaceitável!

Leio notícias que dão conta do fim do Lokeren, clube belga fundado há 50 anos, por falta de dinheiro para pagar as dívidas, segundo a imprensa belga, avaliadas em cerca de 5 milhões de euros (imagine-se o que é isso ao pé das monstruosas dívidas dos grandes colossos europeus…), e por não conseguir encontrar quem invista o suficiente para o salvar da falência. O Lokeren estava agora na segunda divisão belga, perdeu entretanto a licença para competir e parece que o seu proprietário, Louis de Vries, está resignado à falência.

Assim à primeira vista, o Lokeren não é nome que diga grande coisa às novas gerações de adeptos, e, em boa verdade, não podemos considerar o Lokeren um dos históricos do futebol belga, tão longe que está, evidentemente, da história e da dimensão de um Anderlecht, de um Club Brugge ou de um Standard de Liège.
Mas, em Portugal, um clube em particular, no caso o Benfica, não esquecerá o Lokeren, porque o enfrentou na caminhada que levaria as águias até à histórica final da Taça UEFA de 1983 - que disputariam, e perderiam, por sinal, para outro adversário belga, o mais poderoso Anderlecht.

Apesar das vitórias dos encarnados sobre o Lokeren nas duas mãos daquela segunda de cinco eliminatórias até à final, que então se disputava também em dois jogos (a águia venceu em Lokeren, por 2-1, com 2 golos de Filipovic, e em Lisboa, por 2-0, golos de Nené e Humberto Coelho), a verdade é que aquele Lokeren também não era nenhuma equipazinha de trazer por casa, como adiante se verá.

Aquele Lokeren, treinador pelo já desaparecido Robert Waseige (sim, esse gentleman belga que treinou o Sporting), tinha internacionais belgas como René Verheyen e Raymond Mommens, vice-campeões da Europa de seleções em 1980, e ainda Marice De Schrijve, todos eles com presenças notadas também no Mundial-82, e os dois primeiros no Euro-84 - e Mommens viria a estar ainda na seleção belga que tão brilhantemente atingiu as meias-finais do Mundial-86.
Tinha igualmente outros internacionais, como o holandês René van der Gijp, ou o jovem dinamarquês Kim Christofte (que viria a sagrar-se campeão da Europa pelo seu país em 1992), e ainda o islandês Arnor Gudjohnsen (pai do famoso Eidur Gudjohnsen, que jogou, por exemplo, no Chelsea de Mourinho, e no Barcelona de Rijkaard).

Os Gudjohnsen, pai e filho, ficaram também famosos por serem os únicos, na história do futebol, a estar como jogadores num mesmo jogo de seleção - e só não jogaram juntos porque naquele Islândia, 3-Estónia, 2, de 1996, o filho Eidur, então com 17 anos, substituiu precisamente o pai Arnor, então com 34 anos.
Naquele Lokeren que se cruzou com o Benfica jogava ainda, e sobretudo, um outro internacional dinamarquês que viria a marcar profundamente aquele tempo. Tratava-se do avançado Preben Elkjaer Larsen, considerado o primeiro ícone do futebol dinamarquês, que brilhou pela seleção no Europeu de 1984 e no Mundial de 1986, e que, após sensacional transferência para Itália, viria a ser um dos principais responsáveis pelo único título de campeão italiano que ostenta o Verona, conquistado em 1985.

Aquele Lokeren, como se vê, estava longe de ser uma equipazinha de trazer por casa  e mesmo que o seunome venha, agora, lamentavelmente, a ser apagado do mapa do futebol belga, não será apagado da história, dessa história feita, sobretudo, pelos jogadores. Os jogadores passam e os clubes ficam, é o que se diz e é verdade, mas a história dos clubes não existiria sem a história dos jogadores.

E é pelos jogadores que vale a pena lembrar que a história não se apaga. Nunca!

PS - Celebram-se este sábado 46 anos sobre o abençoado 25 de Abril que temos obrigação de nunca deixar esquecer, e tenho visto por aí muita polémica em torno das comemorações (possíveis e muitíssimo condicionadas, naturalmente) que vão decorrer na Assembleia da República, mesmo neste cenário de crise de saúde pública. Não me detenho na questão, apenas deixo uma pergunta: não tem o Parlamento estado sempre a funcionar, e nalguns dias provavelmente com um número de pessoas muito próximo do número que se reunirá para celebrar a «Revolução dos Cravos»? Porquê fechá-lo, então, logo no 25 de Abril?
Há 46 anos, na noite de 24 para 25 de abril, permitam-me a recordação, fui ver o filme ‘Pantera Negra’, creio que era esse o título do filme sobre a vida do Eusébio, numa sala de cinema ali para a Baixa de Lisboa. É memória muito viva.
Não terei, por outro lado, compreendido de imediato tudo aquilo que viemos a viver no dia seguinte, mas recordo também que não demorei muito a entendê-lo. Era fácil. Difícil é compreender os que hoje parecem querer esquecê-lo ou, simplesmente, levá-lo a ser ignorado.
A propósito… tenho muitas saudades do Eusébio!