O inverno do meu desconfinamento

OPINIÃO23.05.202004:00

Desde que ando mais desconfinado, ando mais desconfiado. Tanto mais que não me sinto menos  descontinuado. Faltam-me pessoas na vida. Faltam-me escolhas. Faltam-me hábitos que, por mais que me esforce, não entram em desábitos.


É verdade que também me falta futebol. O futebol a sério, o futebol jogado, o futebol que mexe por dentro com emoções e sensações, o futebol-arte, que nos desperta para o sentido estético da vida. Mas também me falta o Bairro Alto, as noites frenéticas de um povo sem horas, refastelado de ócio e prazeres mundanos.


Tal como me falta a vontade de entrar nos meus restaurantes de eleição, onde eu e os meus amigos, ou a minha família, somos recebidos como amigos e não como simples clientes. Não quero estar num restaurante e sentir-me como se estivesse a comer à mesa da sala 3 do serviço de infetocontagiosos do Curry Cabral, com enfermeiros de máscara a servirem-me filetes de peixe galo com açorda de ovas, em travessas acabadas de desinfetar e a beber um Douro por copos ainda com cheirinho a lixívia.


Tenha paciência! - dizem-me os conselheiros sanitários da Pátria, aliás, a desempenharem um notável trabalho de eficiência e rigor, e eu sinto-me como um pobre de mão estendida, rejeitado à porta da igreja, reconhecido por olharem por mim e conformado por em mim não repararem.


Enfim, a reclusão já foi pior, quando a esmagadora maioria dos portugueses estava em prisão domiciliária, embora sem pulseirinha eletrónica, experimentando, obviamente sem as mesmas regalias e vantagens, o casto recolhimento de banqueiros em dívida eterna com o povo.


Há uma luz ao fundo do túnel - assinalam-me com o entusiasmo de um morto de sede perante a visão de um oásis no deserto. E eu olho para o fundo e, sim, consigo ver que o regresso do futebol, a avaliar pelas tonterias das discussões públicas e publicadas, não é nenhuma miragem, é mesmo verdade, está a chegar, já é possível sentir o cheiro pestilento dos interesseiros e ouvir as cansativas balelas dos habituais trapaças.


Mas eu sei que a mim só me engana quem eu quero, que esta nova normalidade, que é a normalidade mais anormal desta minha já provecta idade, está ainda para durar e que, por enquanto, não consigo ver o dia dos beijos e dos abraços que hei de dar.


Talvez comece a sentir que me falta tempo para não ter o tempo de que preciso. Que esbanjar dias, semanas e meses numa mansidão indolente feita de distâncias de segurança, como se cada ser humano fosse um inimigo mortal, não me parece encorajador. E muito menos sentir-me parte desse grupo de excluídos que definha de exageros protetores inversamente proporcionais à efetiva provisão dos afetos.


Tudo passa e, um belo dia, todo este tempo apenas irá parecer-te um pesadelo de uma noite - garantem-me. Ainda bem que há gente assim, bem intencionada e otimista, como diria o Presidente Marcelo do nosso primeiro-ministro, que desceu o Chiado numa procissão solitária, com o Pessoa a medi-lo, chateado que nem um peru, sem companhia para se sentar na cadeirinha da Brasileira.


Peço imensa desculpa, se mais os deprimi. Fui certamente imprudente em vir entristecer de prosa quem ainda tem o bom e nobre gosto de ler um jornal. Mas tenho a noção de que outros por essas páginas da imprensa nacional se esforçarão por vos alegrar com textos de admirável atualidade sobre os árbitros que serão sacrificados a voar com o inimigo ou sobre o madeirense que se orgulha de espetar a faca nas costas do vizinho. Sempre os haverá de compensar.