O golfista no jardim

OPINIÃO06.02.202106:10

No jardim do bairro, naquela voltinha que permitem, uma história de desporto, acho eu

EU caminhava sozinho, mãos nos bolsos, mascarado, para uma curta volta pelo bairro antes da hora do almoço, quando passei pelo jardim. Não se via ninguém, além de um ou outro vizinho no outro passeio. Os cafés fechados, a coisa mais triste que um país pode ser. Um homem atravessa a relva do jardim, balouçando um taco de golfe, o que de repente me pareceu, nestes tempos violentos, vagamente ameaçador. Fiquei no sítio, as mãos já fora dos bolsos, e ele sorriu-me. Perto de mim, uns quatro metros para dentro do jardim, estavam três bolas de golfe. Ele trazia mais duas na mão esquerda, e disse-me: «Umas tacadas para desopilar.» «Faz bem. Veja lá não vá partir vidros», brinquei.  Ele riu-se. Explicou-me que estava a fingir que o buraco era o candeeiro do jardim, a uns vinte metros, calculei, pelo que o pior que podia acontecer era, de facto, partir o candeeiro, se calculasse mal a tacada. Fê-lo procurando em mim uma cumplicidade, esperando que eu não o fosse denunciar, sabia lá eu a quem, se por acaso ele partisse o candeeiro. Fiquei a vê-lo. Num canto do jardim, o homem, uns 50 anos, cabelo farto a esbranquiçar, calças de treino mas camisa e pulôver, iniciou aquele ritual da tacada, vendo o futuro projetado em vinte metros, um futuro sem a complexidade do tempo, um futuro que era apenas um distância.  Acertou na bola e eu atentei na trajetória, desejando que ele partisse o candeeiro, para nos rirmos os dois, miúdos. Mas não, acertou demasiado bem na bola e ela parou perto do poste, mas longe da lâmpada. Balançámos as cabeças, elogiando a aproximação. Ele iniciou outra tacada, mas já não a vi. Ouvi só o som da pancada ao afastar-me do jardim. Talvez ele tenha acertado no candeeiro, maldito, que nos oferece a luz escura destes dias.