O futebol feminino como uma orquestra

OPINIÃO15.07.202306:30

Com a Seleção Nacional na Nova Zelândia impõe-se a presença de dois maestros

Aseleção feminina de futebol está a representar Portugal na Nova Zelândia, no respetivo Campeonato do Mundo. Aqui fica o meu desejo que tudo funcione na nossa delegação como se fosse uma orquestra. Onde se impõe naturalmente a presença de um maestro. Melhor dizendo, dois maestros. O selecionador nacional, com responsabilidades de gestão operacional da equipa e liderança motivacional das jogadoras, e o respetivo dirigente da Federação Portuguesa de Futebol, com a responsabilidade e representatividade institucional. Maestros estes a quem se exige uma constante improvisação criativa, deixando sempre que possível as músicas (as jogadoras) tomar as suas próprias decisões.

Numa orquestra, tal como no país e no desporto nacional, quem lidera deve antecipar de modo imaginativo tudo o que possa vir a acontecer. Também inspirar e mobilizar a motivação dos membros do coletivo contribuindo para o objetivo comum previamente estabelecido.

E fomentar que as músicas se ouçam umas às outras e, intuitivamente, se sintonizem. Principalmente, que seja bem evidente que nenhuma das músicas que compõem esta nossa orquestra futebolística se particularize, ou por estar ausente ou por querer impor os seus interesses particulares. 

VEJAMOS o exemplo de uma banda de jazz. Os músicos selecionam primeiro uma estrutura musical à volta da qual vão trabalhar. São todos responsáveis por, à vez, improvisar e produzir uma variação à volta do tema escolhido. Uma estrutura do tipo ‘começamos pelo solo de trompete, segue-se a bateria’, segundo uma ordem em que cada músico atua à vez. Mas em que cada músico atua mesmo! 

Ninguém se demite das suas responsabilidades, todos assumem a importância da respetiva participação. Claro que no treino e preparação que desenvolvem, por vezes instala-se a dúvida quanto ao que fazer a seguir e geram-se naturais confusões e conflitos. Precisamente o que acontece quando na nossa orquestra futebolística as respetivas músicas se movam no decurso da competição da dúvida para a ação.

COMO qualquer maestro, nenhum selecionador nacional de futebol feminino cria o que quer que seja a partir do nada. As músicas têm os seus instrumentos e a sua orientação artística. A sua espontaneidade e capacidade de improviso, tem como suporte o modelo musical que perseguem, a competência em que assenta a sua arte, a tecnologia que o apoia.

O que significa que para um selecionador nacional feminino ser criativo quanto necessário, tem de exigir disciplina e uma base estrutural a partir da qual se tornará possível a cada música improvisar, inovar e criar nos limites do desconhecido.

Ao selecionador nacional exige-se a necessidade de exercer a sua função ajudando a sua orquestra futebolística a progredir e a melhorar competências enquanto se confronta naturalmente com as questões difíceis do dia a dia. Aprendendo a fazer, fazendo, experimentando em grupo e melhorando continuamente através da reflexão sobre os erros cometidos.

Tal como em qualquer outra orquestra, estará obrigado à descoberta de padrões e à necessidade da escolha de qual o melhor tipo de intervenções para cada música. Ao selecionador/maestro pertencerá facilitar a descoberta do porquê dos erros e de eventuais perdas de oportunidades ou hesitações na tomada de decisão; criando oportunidades para que as suas músicas aprendam a ouvir e a fazer perguntas; tal como disciplinem as próprias intervenções, cooperando e preocupando-se umas com as outras.

Ao selecionador/maestro cabe, afinal, ser útil ao coletivo. Gerindo sentimentos e emoções, quer no plano individual, como do grupo. Solicitando aos membros da sua orquestra que sejam capazes de se auto conhecerem, centrarem-se no que são (pontos fortes e fracos), assumindo as suas responsabilidades e demonstrando empenho e sentido de urgência. Naturalmente, algumas das músicas estarão mais à frente que outras na possibilidade de serem mais eficazes, por razões de personalidade, educação, treino anterior.

Mas todas poderão melhorar e atingir níveis de eficácia bastante interessantes através da aprendizagem e do treino a que sejam sujeitas. Tal como nas orquestras, será fundamental que não desafinem e, principalmente, que assistir às suas exibições não seja, por vezes, uma desilusão.

MAS não só de futebol feminino vive o desporto português. Não há pensamento do Desporto, fora e independentemente da realidade humana que o faz e que o envolve. Antes da técnica e da tática, do treino e da competição, exige-se um saber que não seja apenas um saber físico-técnico-tático do Desporto, mas epistemológico também. 

Precisamos possuir uma visão clara do que pretendemos atingir e como fazê-lo, envolvendo nessa tarefa tudo e todos. E que fique bem claro que não é uma questão de utilização de determinadas ferramentas ou panaceias milagrosas. Não existem receitas; mas sim um caminho que devemos prosseguir paulatina e obstinadamente. Onde desempenham uma ação decisiva a estratégia que utilizamos, a liderança que exercemos e o trabalho de equipa que formos capazes de mobilizar.

Urge assim encontrar um princípio estratégico mobilizador, um guia orientador da intervenção social, política e desportiva a ser desenvolvida. Juntando-lhe valores e cultura quanto baste. Idem sabendo ser criativos e autónomos, revelando paixão, gostando daquilo que fazemos, acreditando em nós e nos outros, confiando para ser confiável, sentindo os desafios do país e do desporto nacional como se fossem os de cada um de nós a nível pessoal.

QUANDO se trata de ambicionar a excelência para o nosso desporto, também a organização e a disciplina têm uma palavra a dizer. No âmbito da disciplina, uma vez estabelecidas as regras iniciais, ela deve ser assumida sem qualquer tipo de dramas.

Disciplina assumida, auto preparação e responsabilização individual como ingredientes de decisiva importância. Pego em excertos do que escreveram Thomas Peters e Robert Watman no seu livro Na senda da excelência (Publicações D. Quixote): «Quando alguém se submete sem reivindicações a horários como os de entrar às nove e sair às cinco da tarde, ou a um treino e preparação que o força a ultrapassar os limites da sua zona de conforto, tal só se compreende quando existe algo de importante para além disso e que conduz essa pessoa a sentir a importância de o fazer, (orgulho de pertença, necessidade de sobrevivência, etc.).»

«Mas em paralelo com isso, mesmo quando nessa situação, essa mesma pessoa sente uma enorme necessidade de se destacar individualmente.»

«Temos de abrir exceções à teoria tradicional da gestão. O modo como os seres humanos trabalham, individualmente e em grupo, exige-nos isso mesmo. Em vez de jogos intelectuais na torre de marfim, o gestor tem de moldar e formar os valores e ser como um treinador de uma equipa ou o evangelista religioso, ganhando e envolvendo tudo e todos para a excelência. Onde os valores da improvisação se sobreponham aos da previsão, se lute por oportunidades em vez de existirem restrições, se descubram novos modos de actuar em vez de preservar os antigos, se dê mais valor aos argumentos e disputas do que à serenidade, se encoraja a dúvida e a contradição em vez da crença na organização.»

O interruptor do sucesso que buscamos para o país e para o desporto português está longe de ser aquele que ao longo dos anos procuraram impingir-nos! Bem pelo contrário! A realidade exterior, pela sua diversidade e constante mutação, requer que sejamos autónomos e não propriamente robots!

Exige que as nossas expectativas individuais sejam respeitadas e nos proporcionem retorno constante acerca do que estamos a fazer bem ou mal. E acima de tudo que seja reconhecido de uma vez por todas que, no futuro, não será simplesmente por via do saber/conhecimento e das novas tecnologias que acontecerá a diferença para melhor.

O que verdadeiramente nos distinguirá será o nosso comportamento individual e coletivo! Como, aliás, assim o confirmam os mesmos autores atrás citados, ao dizerem-nos que, no futuro, «a diferença existente nas organizações ditas excelentes, residirá no facto de no seu interior existirem colaboradores pragmáticos, inovadores e dispostos a varrer a burocracia.»

Ainda algo muito importante. Para haver superação, tem de existir pressão, exigência, aqui e ali mesmo adversidade. Quase sempre, é na dificuldade que nos transcendemos na busca da concretização de determinados objetivos. O que nos deve levar a concluir que, para que individual e coletivamente consigamos a devida superação, o meio ambiente que rodeia o país e o desporto português deve conter esses ingredientes fundamentais. 

CONCLUO, chamando a atenção dos dirigentes e treinadores do futebol feminino nacional para o livro Bem aventurados os que ousam, de Isabel Abecassis Empis (Oficina do Livro). Nessa sua obra, a autora alerta-nos para a necessidade de nunca esquecermos que, por vezes, a nossa mente nos mente.

«A mente, no seu lado reativo anárquico e inventor de medos e perigos, pode levar-nos a não sentir a realidade dos factos e a reagir antecipadamente, em vez de os sentir. É uma mente que mente.»

«Mente a realidade, deforma-a e torna-a na nossa realidade, substituindo-se aos nossos talentos.»

«Passamos assim a viver, sem nos darmos conta, como uns trapalhões, atrapalhados e atropelados.»

Termino com o desejo de podermos em breve ter um futebol feminino nacional como uma boa prática e um exemplo para todas as restantes modalidades.