O estado de direito e o estado do futebol

OPINIÃO06.08.202206:30

Todas as reformas que no Desporto se pretenderam fazer encontraram sempre grande resistência por parte do futebol

HÁ quem julgue, e às vezes com razão, que a República Portuguesa, para além de um Estado de direito democrático, que se rege por uma Constituição, e se baseia na soberania popular, no pluralismo de expressão e organizações políticas democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa, contém, dentro de si, um outro estado -  o do futebol -, vulgarmente conhecido por sistema, que se rege, não por princípios legais e constitucionais, mas segundo os seus interesses e conveniências. Era assim antes do 25 de Abril de 1974 e continua a ser assim após aquela data, pese embora os seus dirigentes, como os políticos, continuarem, ainda segundo os seus interesses e conveniências, a descer a Avenida da Liberdade, de cravo na lapela, que às vezes até cheira mal, tal é o cinismo e a hipocrisia dos seus portadores.

Todas as reformas que no Desporto se pretenderam fazer encontraram sempre grande resistência por parte do futebol, designadamente da Federação Portuguesa de Futebol, a começar pela Lei de Bases do Sistema Desportivo, Lei 1/90, que foi mais difícil de vencer que o muro de Berlim, que aliás foi derrubado antes, em Novembro de 1989. Sei do que estou a falar, porque além de estar entre os dirigentes que restauraram uma liga adormecida, fiz parte da comissão que fez propostas para essa mesma Lei de Bases, por nomeação do Governo e indicação unânime da Associação Nacional de Clubes. Quando a lei portuguesa foi aprovada, já análoga lei espanhola (aprovada em 1980) - grande alavanca para o progresso do desporto do país vizinho - estava em revisão!...

Não me admira, portanto, que certas pessoas, que não sabem bem o que é o Estado de Direito, que não têm cultura e instrução para compreender o que é a democracia, discutam à mesa do café assuntos de justiça - seja ele qual for - de uma forma absolutamente ligeira e retrógrada. O que não posso admitir é que alguém com curso superior e com alto cargo na hierarquia das instituições desportivas se permita fazer considerações infundamentadas sobre instituições criadas pela Assembleia da República. As suas afirmações, infelizes a todos os títulos, podem soar bem nas redes sociais, mas influenciam maldosamente o público menos atento e esclarecido e procuram branquear a sua própria incompetência. E denotam o mais completo desrespeito por um tribunal que, constitucionalmente, pode coadjuvar os tribunais - órgãos de soberania - no exercício da sua função jurisdicional.

Foi uma Lei da Assembleia da República - a Lei 74/2013 - que criou o Tribunal Arbitral do Desporto, com competência para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto. É, portanto, à Assembleia da República que o senhor presidente da Liga de Futebol Profissional se deve dirigir para lhes explicar por que é que, para o futebol profissional, o TAD não deve existir, já que eu não posso acreditar que pense que o futebol profissional não seja desporto.
 

Pedro Proença, presidente da Liga Portugal, apresentou o seu plano para o futebol


O senhor presidente da Liga de Clubes devia dizer frontalmente que aquilo que verdadeiramente o incomoda ou simplesmente lhe faz comichão é que o Tribunal Arbitral do Desporto seja, nos termos da lei citada, «uma entidade jurisdicional independente, nomeadamente dos órgãos da administração pública do desporto e dos organismos que integram o sistema desportivo, dispondo de autonomia administrativa e financeira». O que verdadeiramente o põe irritado é a «competência especifica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto», de acordo com as leis e a Constituição de um Estado de Direito, com independência e autonomia, livre das amarras dos interesses e conveniências. O que o senhor presidente quer é um organismo do Governo com funcionários de Estado a fazer justiça mais célere e ... mais conveniente! Isto é: pede ao Governo aquilo que ele não consegue pôr a funcional como deve ser e que tem dentro da sua casa, chegando ao ridículo de dizer que a Comissão de Inquéritos tem de ser profissionalizada, o que significa que uma Liga Profissional tem um órgão de amadores!...

O senhor presidente da Liga, para discutir o assunto da celeridade de uma forma séria, tem que apontar casos concretos em que a não celeridade do TAD possa ter provocado prejuízos a alguma competição e não pode omitir, sob pena de grave desonestidade intelectual, que os recursos para os Tribunais do Estado, onde a pendência é, não sei quantas vezes, maior que a do TAD, que a lei prevê no artigo 19.º uma Câmara de Recurso dentro do próprio TAD. Na verdade, «as decisões dos colégios arbitrais são passíveis de recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo se as partes acordarem recorrer para a câmara de recurso, renunciando expressamente ao recurso da decisão que vir a ser proferida». Explique então porque é nestes anos todos de existência do TAD não entrou até agora um único recurso para a citada Câmara? No que diz respeito à Liga e aos clubes que a constituem, já alguma vez se dignou promover esse acordo que tornaria mais célere a fase ou fases do recurso? E se não conseguiu, de quem é a culpa? Também é do TAD? Ou melhor: quando o senhor diz que o TAD não devia existir, está a falar em representação de quem?

É mais fácil atirar a culpa para cima de quem aplica as leis do que para cima de quem as faz, mas não é uma forma séria de enfrentar questões desta natureza, que devem ser tratadas com elevação e dignidade e não em conversas de pátio, por muita audiência que tenham. Neste país gosta-se muito das banalidades que se dizem nas entrevistas e nas redes sociais, mas foge-se como o diabo da cruz do contraditório e é por aí que se anulam muitas decisões dos órgãos de disciplina.

Nunca me permiti comentar decisões do TAD nem questões que possam ter que vir a ser decididas por este tribunal, não por receio de as enfrentar, que não é propriamente uma característica minha, mas porque entendo que devo manter recato e respeito pelas decisões colegiais. Mas isso não me impede de vir a terreiro, não para defender o TAD, que não precisa, mas a minha própria dignidade, pese embora nem todos terem autoridade moral para o fazer.

Fiz no dia 3 deste mês cinquenta anos de advogado e faço no próximo dia 13 quarenta e dois anos que tomei posse do meu primeiro cargo directivo no desporto. Um ano antes, mais ou menos, já colaborava com o Gabinete Jurídico do Sporting, onde tive os primeiros contactos com a regulamentação desportiva, designadamente com a do futebol. Vivia então, e ainda, a ilusão da justiça, mas apercebi-me de imediato que essa legislação tinha pouco a ver com o Estado de Direito, e, pelo contrário, se entendia que o futebol era o mundo à parte. Não se evoluiu muito até que em finais de 1995 Bosman enfrentou com sucesso as instâncias reguladoras do futebol na justiça e o revolucionou.

O Estado de Direito é para cumprir no futebol como em todos os sectores da vida em sociedade. Mas é para cumprir mesmo, e não para usar apenas como um slogan, tão ao gosto dos dirigentes desportivos e dos políticos, tipo publicidade: o Omo lava mais branco! O Estado de Direito não é para branquear as sujeiras e as trapalhadas dos prevaricadores, sejam elas do futebol ou de outros lados, e venham elas de onde vierem.
 O futebol joga-se com os pés e com a cabeça. Na justiça, os pés não servem para mais nada senão para apoiar uma coluna, direita e vertical, e a cabeça deve-se usar com senso e inteligência. Não, Dr. Pedro Proença, a culpa do estado da disciplina do futebol não é do Estado de Direito, mas daqueles que tratam o Direito com os pés e só têm a cabeça para pôr o chapéu. E chapéus há muitos!...
 

O HUMORESTÁ DE LUTO 

Omeu homónimo José Eugenio (Jô) Soares morreu. Um homem cuja inteligência produziu um humor que só um homem inteligente pode produzir. Os meus ídolos do humor (Jô Soares e Raul Solnado) já cá não estão e guardo deles apenas as memórias das gargalhadas que me provocaram ao longo da minha vida. Hoje deito uma lágrima pelo Jô, que conservei das muitas que deitei por Raul Solnado, que conheci pessoalmente. Não é difícil dizer disparates e coisas sem sentido. Difícil é dizê-los com humor que nos faça rir. Porque há disparates que só nos dão vontade chorar, tal é a tristeza e o ridículo!