O espírito de 96 contra o de 92
A Inglaterra volta a jogar uma meia-final em Wembley (a última em 1996 acabou mal para Southgate) contra uma Dinamarca a sonhar com a fábula de 1992
DOS quatro juntos semifinalistas do Europeu, não se pode dizer que seja uma grande surpresa a Inglaterra ter chegado aqui, na medida em que a seleção dos Três Leões esteve nas meias-finais das duas últimas grandes competições. No Mundial de 2018, na Rússia, foi afastada da final pela Croácia (1-2); na Liga das Nações de 2019, em Portugal, foi afastada da final (no Dragão) pela Holanda (1-3). Ou seja, acabaram-se as dúvidas: a velha e boa Inglaterra é mesmo para levar a sério. Gareth Southgate tem ali uma seleção forte, em crescendo, que parece ter largo futuro dada a média etária e a cultura vencedora dos jogadores mais determinantes. Cultura vencedora numa seleção inglesa!?! Sim. Nas mais jovens, não se esqueçam que jovens feras como Phil Foden, Jadon Sancho, Calvert-Lewin, Mason Mount, Reece James, Jack Grealish, Ben Chilwell, Jordan Pickford e Aaron Ramsdale foram protagonistas daquele esplendoroso ano de 2017 em que os sub-20 e os sub-17 ingleses foram campeões do Mundo; os sub-19 foram campeões europeus; os sub-17 foram vice-campeões europeus; e os sub-21 chegaram às meias-finais do Europeu.
Junte-se-lhes um lote de maduros experientes como Harry Kane, Kyle Walker, Henderson, Trippier e Sterling (mesmo assim, só 26 anos!) e está o cocktail pronto a servir. A Inglaterra fez um grande jogo com a Alemanha (2-0) e foi simplesmente arrasadora perante a Ucrânia (4-0). Que velocidade, que intensidade, que contundência ofensiva e que incrível cultura tática mostraram os leões de Southgate! Digo-vos que não via uma Inglaterra tão boa desde o consulado de Eriksson (2001-2006). O show inglês em Roma foi de tal forma impressionante que boa parte da imprensa internacional, italiana incluída, já questiona se não são eles, afinal, os grandes favoritos ao título europeu - até porque jogam em casa. A última meia-final que a Inglaterra jogou em Wembley foi a do Euro-1996, perante a Alemanha. Uma batalha épica (1-1) decidida nos penáltis… para os cavaleiros teutónicos. Inesquecível a caraçolha e a pose arrogante de Andreas Muller (desafiando ostensivamente o público) assim que foi consumada a derrota dos anfitriões - um tal de Gareth Southgate falhou o último e decisivo penálti … -; como inesquecível foi a exibição dessa Inglaterra de Terry Venables com a Holanda (4-1!) e o golo (à Pelé) que Paul Gascoigne marcou à Escócia. Mas esse belo espírito do Europeu de 1996 (football comes home) está a ser ressuscitado 25 anos depois.
Nostalgia por nostalgia, esta surpreendente Dinamarca só tem de recuar mais quatro anos que os ingleses - a 1992, ao Europeu sueco - para encontrar a mãe de todas as inspirações - o título que todos querem oferecer ao infeliz Christian Eriksen. Por muito estranha que soe a frase «Dinamarca campeã da Europa» é conveniente lembrar 1992 e aceitar que pode acontecer outra vez. Toda a gente se lembra dessa campanha mágica dos repescados dinamarqueses (substituíram a Jugoslávia em guerra civil) conduzidos pelo cavalheiresco Richard Moller Nielsen, que era uma espécie de Carlos Queiroz dinamarquês (estudioso, organizado e em guerra com a federação). A forma como ele soube virar a favor da equipa todos os handicaps negativos é coisa que não esqueço (cobri esse Europeu ao lado do Fernando Guerra): Moller Nielsen arranjou forma de potenciar o arrojo e combatividade natural dos dinamarqueses com a quase total ausência de pressão/ responsabilidade do momento - ele sabia que toda a gente compreenderia e perdoaria o fiasco anunciado da seleção; como não esqueço as incríveis defesas de Peter Schmeichel, a liderança serena de Lars Olsen e Kent Nielsen, a energia contagiante dos médios Kim Vilfort e John Jensen, a categoria do ala esquerdo Henrik Larsen (gravemente lesionado no jogo com a França), o talento de Brian Laudrup, a fome de Flemming Povlsen.
Vejo muito de Richard Moller Nielsen (morreu em 2014, com 76 anos) na maneira como o atual selecionador, Kasper Hjulman, soube recuperar e motivar uma seleção destroçada com o drama de Eriksen e, claro, com duas derrotas nos dois primeiros jogos. A fantástica resposta da Danish Dynamite no duelo decisivo com a Rússia (4-1), confirmada com nova goleada a Gales (4-0) e um triunfo feito de coração e vontade sobre os rochosos checos (2-1), é digna dos maiores elogios e da maior admiração. Os dinamarqueses reagiram ao drama que os atingiu com brio, compromisso, orgulho, espírito de equipa… e vontade de compensar Eriksen. É com isto que a Dinamarca vai enfrentar hoje mais de 55 mil ingleses em Wembley. A equipa da casa é favorita mas há quem acredite que está na forja um segundo milagre como o de 1992. Não é preciso ir tão longe: há menos de um ano (14 de outubro de 2020), em jogo da Liga das Nações, a Dinamarca foi a Wembley derrotar os ingleses (1-0) com um penálti de Christian Eriksen. Acaso? Talvez. Mas fixem isto: entre novembro de 2016 e setembro de 2020 esta mesma Dinamarca completou quatro anos e 25 jogos oficiais sem uma única derrota (!)… e pelo meio defrontou França e Croácia no Mundial de 2018. Acaso?...
Eu acredito que o que tem de ser tem muita força.
PS - Passou numa semana e continuo perplexo: João Félix foi operado ao tornozelo assim que acabou o Europeu e vai ficar parado dois meses. Entretanto, alguém ouviu uma explicação da Federação, do Atlético Madrid (dos respetivos departamentos médicos), do selecionador, do próprio jogador? A conclusão que se tira é que Félix foi ao Europeu estando, no mínimo, diminuído, e foi com o amén de todos os que lhe podiam ter dito: «Não, João. Não dá. Não estás a 100 por cento e podes agravar o problema.» Caramba, ninguém achou este episódio estranho?
Dinamarca teve um início de Euro atribulado mas continua a alimentar o sonho de repetir a extraordinária campanha de 1992
ITÁLIA, QUE SOFRIMENTO !
CUSTOU imenso, foram precisas duas horas e uma série de penáltis… mas aconteceu: a Itália está na final de Wembley depois de sofrer duas horas com a Espanha. Fica na memória dos italianos a paradinha de Jorginho no penálti decisivo após a defesa de Donnarruma perante Morata, e o golo portentoso do extremo juventino Chiesa à hora de jogo. Foi um duelo intenso e igualado que, reconheça-se, podia perfeitamente ter caído para os espanhóis; a seleção de Luis Enrique criou mais oportunidades para ganhar o jogo tanto no tempo regulamentar como no prolongamento. Roberto Mancini chega ao templo do futebol inglês com um percurso quase limpo - cinco vitórias e um empate em seis jogos! - e devolve a azzurra ao topo do futebol mundial após um longo apagão de nove anos. Bloco organizado, coeso, taticamente brilhante e fisicamente muito forte, a Itália ontem eliminou a Espanha sem ter sido melhor - longe disso! -, mas tem pose e pinta de campeã. Agora falta o mais importante: ganhar a final.