O drama das faltas assinaladas
Equipas de arbitragem precisam de coragem para intervir o menos possível
F ALAR recorrentemente dos mesmos assuntos tem uma grande desvantagem - a de corrermos o risco de nos tornarmos repetitivos, uma espécie de pain in the ass para quem nos lê - mas tem também uma vantagem enorme - a de não deixarmos cair assuntos que devem merecer a nossa atenção.
Vem isto a propósito de regressar, neste espaço, ao tema do número de faltas assinaladas nos jogos da primeira liga portuguesa. Não sei se sabem, mas nesse aspeto estamos ao nível dos piores da Europa. Este é um facto indiscutível, baseado em dados do Observatório do Futebol (épocas de 2020/2021 e 2021/2022).
Há sempre várias razões que podem estoirar com o tempo útil de um jogo de futebol: a bola estar sistematicamente fora das quatro linhas, a perda de tempos nos recomeços de jogo (lançamentos laterais, pontapés de baliza, etc), a demora nas substituições, a assistência e o transporte de jogadores lesionados e, claro, a ocorrência de lances que requeiram a intervenção do VAR. Mas aquilo que realmente causa mais danos à reputação desportiva de árbitro, jogadores e treinadores é o excesso de faltas assinaladas.
Reparem, sempre que um jogo pára para que se assinale uma infração, uma de duas coisas aconteceu: ou o árbitro foi demasiado tecnicista/rigoroso na análise de contactos físicos ou os jogadores teimaram em atropelar as regras. No primeiro caso, a responsabilidade é única e exclusivamente do homem do apito; no segundo é dos jogadores e, muito provavelmente, dos seus treinadores, que têm o poder de impedir que essas condutas aconteçam.
Seja qual for a causa, a consequência é feia. Sempre que um jogo está parado, a bola não rola, o adepto não vibra, o futebol não existe. Não há produto que resista à desvalorização protagonizada pelos seus principais vendedores.
A questão aqui é profundamente cultural - no estrangeiro, os mesmos árbitros assinalam menos infrações e os mesmos jogadores cometem menos faltas - e requer, de todos, um compromisso de tolerância, aceitação e grandeza: as equipas de arbitragem têm que ter coragem de intervir o menos possível; os atletas têm que deixar-se de expedientes antidesportivos (simulações, confrontos, protestos, quedas ridículas); e os técnicos têm que impor a sua autoridade, impedindo palhaçadas ou, pelo menos, não incentivando paragens exasperantes.
O problema é que, na prática, as coisas têm outras causas, bem mais estruturantes: os técnicos sentem-se quase sempre a prazo e, muitas vezes, a única forma de sobreviverem no cargo é à custa do pontinho precioso. Além disso, quando o pequeno David encontra o gigante Golias, vale tudo para ter o maior benefício possível. Por cá, há três Golias, tudo o resto são Davides.
Depois ainda há o adepto, que adora o futebol inglês, que quer muito ver jogos espetaculares, mas que depois espuma de raiva quando o golo que a sua equipa sofreu resultou num contacto discutível sobre o seu defesa. É tudo muito bonito, mas só quando acontece na baliza dos outros.
E por último alguma imprensa - órgãos de comunicação, jornalistas e comentadores - arautos do moralismo, sempre muito céleres a destratar estes e outros problemas do futebol, mas autênticos vampiros na forma como os aproveitam. É a tal questão de sobrevivência, que tantas vezes subverte aquela coisa hoje tanto em desuso chamada ética deontológica. Aí também sou cúmplice, por prestar-me a uma função que parece contribuir mais para o problema do que para a solução.
Quando aceitarmos genuinamente, intrinsecamente, que o jogo tem mais encanto se tiver mais risco e fluidez, tudo vai melhorar. Até que isso aconteça, vamos todos queixar-nos, sendo tão ou mais responsáveis do que todos aqueles que estão em campo. Roma e Pavia não se fizeram num dia, mas fizeram-se. Só custou começar.