O desabafo!
A propósito de uma declaração pública de José Mourinho sobre A BOLA
ANDO, há muitos dias, confesso, a tentar digerir e a tentar perceber o que realmente dizer (ou escrever) sobre uma declaração de José Mourinho, na conferência de imprensa que deu, no início de junho, após nova visita à Faculdade de Motricidade Humana, ali no vale do Jamor, concelho de Oeiras, onde há mais de 30 anos se formou e pela qual é, desde 2009, Doutor Honoris Causa.
José Mourinho é uma das grandes personalidades portuguesas no mundo, um dos mais marcantes treinadores da história, com um sucesso absolutamente ímpar, e que eu, nalguns anos até de forma bastante próxima, acompanhei, como jornalista, com a admiração que José Mourinho desde cedo começou por merecer e justificar como fortíssimo treinador e como enorme competidor e ganhador, mas também com o sentido crítico que a minha profissão (e, sobretudo, a minha consciência profissional) me impõe.
O que José Mourinho conseguiu na inigualável carreira que construiu até agora deve-o, sobretudo, a ele próprio e a um talento inato para compreender o jogo, para ganhar, para identificar e trabalhar com jogadores, para estruturar equipas, montar estratégias, analisar adversários. E deve-o também, evidentemente, a todos os que com ele trabalharam na preparação das equipas (seja do ponto de vista técnico, de organização, ou clínico), deve-o a todos os jogadores e dirigentes que teve, e a todos os clubes que lhe confiaram ambições e objetivos.
Habituei-me a olhar para Mourinho como se olha para alguém realmente raro. Lembro-me de conversar com ele, há mais de 20 anos, e de ficar fascinado pela agilidade com que o via raciocinar sobre tudo o que dizia respeito ao futebol, pelo modo como parecia compreender e ver o que outros me pareciam incapazes de alcançar.
A fluência com que as conversas lhe saíam, a frescura das ideias, as convicções firmes (que davam clara imagem de alguém que sabia muito bem o que queria e como queria), a fortaleza da personalidade (algo que não poderia deixar de seduzir qualquer jornalista), tudo me fazia crer, ainda antes de começar a carreira de treinador principal no Benfica, que José Mourinho estaria já muito à frente de todos os outros…, e tudo isso melhor descobri quando tive, por exemplo, o privilégio de conversar demoradamente com Mourinho, durante um almoço, neste meu/nosso Bairro Alto de trovas antigas, lá pela primavera do ano 2000, pouco depois de ele ter deixado o lugar de treinador adjunto no Barcelona, absolutamente decidido a vir para Portugal emancipar-se, em definitivo, como técnico principal, sem imaginar, tenho a certeza, que começaria pela grande porta de um clube tão grande como o Benfica.
APESAR das distâncias, as naturais e as forçadas pela vida profissional de cada um, mantive com José Mourinho, desde sempre, uma relação de muito respeito e bastante consideração. Apesar do extraordinário sucesso, durante muito e muitos anos, José Mourinho nunca me deixou ficar de mão estendida, como se costuma dizer, nunca me deixou ficar sem resposta, mesmo que fosse para dizer que não respondia, nunca deixou de me retribuir a mais simples mensagem telefónica, dispensando-me até, diria, sentimentos de alguma amizade, que sempre registei com emoção, porque o jornalismo e a minha condição de profissional com 40 anos de carreira não pode, nem deve, impedir-me de construir amizades com pessoas que fui conhecendo no mundo do desporto, exatamente por ser jornalista, e que não teria certamente conhecido de outro modo.
NO estrangeiro, cruzei-me com José Mourinho em Barcelona, em Londres, em Madrid e em Milão, umas vezes mais demoradamente (em entrevistas), outras mais a correr (em conferências de imprensa). Nunca, em qualquer circunstância, José Mourinho deixou de me saudar, como jornalista português, e sou testemunha que nunca deixou de saudar outros camaradas portugueses, especialmente quando nos encontrávamos, repito, fora do nosso País.
José Mourinho foi, por tudo isso, sempre, mas sempre, muito acompanhado jornalisticamente, sem qualquer favor e como a carreira dele justificava, e A BOLA, durante anos talvez até mais do que qualquer outro meio de comunicação, procurou estar sempre perto do grande treinador português que, como Cristiano Ronaldo, foi decisivo para mudar a face do futebol português no mundo.
Recordo, aliás, o momento em que A BOLA, aí por 2006, creio, distinguiu, muito merecidamente, José Mourinho com o Prémio Vítor Santos - nome de um dos maiores nomes da história de A BOLA, distinção atribuída apenas a personalidades de grande relevância no mundo do futebol -, e recordo-me, porque era eu, então, o chefe de redação do jornal, de ter participado muito ativamente na organização do momento que trouxe a Lisboa José Mourinho, na altura treinador bicampeão pelo Chelsea, a visitar, que me lembre, pela segunda vez o velho edifício da Travessa da Queimada, no Bairro Alto, que é a casa de A BOLA (hoje A BOLA jornal, A BOLA online e A BOLA TV) há mais de 75 anos.
HOJE, os tempos são outros, é verdade, e estão mais difíceis que nunca, e mais difíceis que nunca sobretudo para os jornais, tempos muito difíceis com uma pandemia que nos acertou, a nós, profissionais de imprensa, como um verdadeiro murro em cheio no estômago, e nos revolve ainda mais as entranhas com uma guerra que nos toca a todos, tempos mais difíceis que nunca, pois, para esta minha A BOLA, evidentemente, que mesmo com toda a sua história, peso e memória, não deixa de enfrentar estes tempos tão difíceis com a noção da realidade, e a realidade é que, hoje, como os tempos são outros, também as prioridades se tornaram diferentes, e as possibilidades nem sempre são, infelizmente, as que gostaríamos que fossem.
Não é desculpa, é o tempo que vivemos, e por isso um jornal como A BOLA não está em tempos de acompanhar, como acompanhava, os tempos de homens do desporto e do futebol como José Mourinho, que vive agora em Roma uma espécie de capítulo especial numa carreira que não voltará certamente a ser o que era, mas que nunca deixará de ser a enorme, ímpar, histórica, vencedora, dificilmente igualável, que foi.
O que nunca esperei, com toda a sinceridade, foi ouvir José Mourinho, como ouvi agora, no início de junho, na tal conferência dada na faculdade onde se formou e à qual, honra lhe seja, Mourinho nunca virou costas, nunca esperei, dizia, ouvi-lo dizer que «A BOLA não gosta de mim!».
Por muitos erros que tenhamos cometido, e cometemos certamente, por mais que tenham sido os comentários menos elogiosos que profissionais desta casa tenham feito, nenhum de nós é A BOLA e A BOLA, sendo todos nós, estará sempre acima de qualquer um. Foi sempre esta A BOLA que nunca largou a carreira de Mourinho, e sempre o acompanhou, com o destaque merecido, o elogio justificado, o brilho que se impunha, desde que um dia entrou pela porta grande do Benfica, passando pelos anos absolutamente iluminados no FC Porto, até chegar ao topo do mundo, além-fronteiras.
Nunca esperei ouvi-lo dizer o que ele disse, e publicamente, ainda por cima, e muito menos com a frieza e crueldade com que me pareceu que o disse.
ANDEI, confesso, muitos dias a digerir o que ouvi José Mourinho dizer (influenciado ou por convicção, espero que ele possa, ou queira, um dia esclarecer-me), e a tentar perceber o que dizer/escrever sobre o que Mourinho disse. E, amadurecidamente, devo responder: José Mourinho, que tanto sempre admirei, é que não deve, realmente, gostar de A BOLA. Se gostasse, teria concedido a entrevista que nos prometeu há mais de cinco anos, ainda como treinador do Manchester United, e que nunca, até hoje, teve a nobreza de cumprir dar.
E sabes, Zé, como carinhosamente sempre me permitiste tratar-te, ninguém mais do que eu o lamenta!
PS: O leitor que me perdoe o desabafo, em tom mais intimista, sobre um tema que, bem sei, não lhe acrescenta, a si, caro leitor, rigorosamente nada de relevante. Não é que se trate de uma questão pessoal, porque não se trata, realmente, de uma questão pessoal. Trata-se, sim, de me parecer um indispensável desabafo público sobre uma declaração que José Mourinho escolheu fazer publicamente. Apenas isso.