O decreto

OPINIÃO19.06.202004:00

Se a retórica de Bruno Lage o fizesse ganhar jogos, o Benfica seria certamente campeão e nem teria passado o que tem passado desde que, lá no distante mês de fevereiro, saiu derrotado, fora de casa, do confronto com o grande rival FC Porto. Mas, infelizmente para o treinador do Benfica, não será a retórica, como já se percebeu, que o fará ganhar jogos, e imagino até que essa mesma retórica já canse os benfiquistas. Se Lage parece não entusiasmar os adeptos com a retórica que tem, como esperar que entusiasme a equipa e os jogadores?

Tem passado Bruno Lage estes últimos tempos, sobretudo estes últimos tempos, a bater na tecla da dedicação ao trabalho. Diz Lage que no Benfica toda a gente trabalha muito, com muita paixão, com muita dedicação, e que todos, a começar por ele, acreditam muito nesse trabalho, e é por isso, pelo que diz, que parece não compreender as críticas.

Ora se toda a gente trabalha tanto e com tanta paixão e dedicação, se o treinador trabalha tanto e acredita tanto no seu trabalho, haverá razão para se considerar que alguma coisa está mal na equipa do Benfica e no futebol que a equipa joga?

Para Lage não há razão alguma. Aliás, não me lembro, sinceramente, de ter ouvido o treinador do Benfica considerar que a equipa fez este ou aquele jogo abaixo do que pode e deve. Para Lage, o Benfica joga sempre muito bem, ou pelo menos bem, faz em campo o que tem de fazer para ganhar, e se não tem ganho - deus do céu!, ganhou apenas dois dos últimos 11 jogos, oito dos quais para a Liga!!! - é por obra e graça do Espírito Santo.

Para o treinador do Benfica, os jogadores têm sido incansáveis e, por ele, não se nota nada que jogadores como André Almeida, Ferro, Gabriel, Rafa, Taarabt, Pizzi, Vinícius, Seferovic ou Dyego Sousa, por exemplo, estejam, nalguns casos, a jogar muito menos do que estavam a jogar quando há coisa de um ano se sagraram campeões.  

Com toda a franqueza, não sei quem quer Bruno Lage convencer com a retórica da dedicação ao trabalho, como se trabalhar com muita dedicação e muita paixão não fosse a obrigação de Bruno Lage e a obrigação dos jogadores do Benfica ou de outro qualquer treinador e jogadores de qualquer outro clube.
Diz Bruno Lage que acredita muito no trabalho que faz. Se não acreditasse Bruno Lage no trabalho que faz, quem acreditaria por ele?

O que é suposto é exatamente Bruno Lage trabalhar muito e acreditar muito no trabalho que faz. Mas isso, creio, é o que devem fazer, repito, todos os treinadores de todas as equipas. Trabalham muito e acreditam muito no trabalho que fazem. Fazem todos os treinadores e faz toda a gente que tenha um pingo de orgulho profissional.

Mas se trabalhar muito e acreditar-se muito no trabalho que se faz fosse suficiente para nos levar ao sucesso e fosse suficiente para sermos os melhores, então nenhum clube precisaria de substituir o treinador e todos os treinadores seriam capazes de treinar e ganhar em qualquer lugar. Sabemos muito bem que não é assim. E Bruno Lage também o sabe.

Tem andado o treinador do Benfica com essa retórica da dedicação ao trabalho talvez por não ser capaz, ou não querer, explicar aos adeptos porque é que uma equipa com tanta responsabilidade e da qual se esperava tanto tem, afinal, jogado tantas vezes tão pouco ou, no mínimo, tantas vezes bem menos do que deveria, tendo em conta a qualidade do plantel que, apesar de tudo, continua a ter e a exigência com que deveria debater-se, até pelo facto de ser a equipa campeã nacional.

TEM o treinador do Benfica, honra lhe seja feita, sido bastante coerente no discurso. É verdade que fala muito, parecendo, porém, dizer pouco, mas tem tido na realidade um discurso coerente: fala quase sempre do mesmo, dá a ideia de estar sempre tudo bem e de não compreender as críticas, lá puxa, aqui e ali, de uma nova história mais emocional, e quase sempre sublinha o trabalho e a dedicação dos jogadores e a fé inabalável que tem no seu próprio trabalho.

Para Lage, parece aplicar-se na perfeição o lema de quem dá o que tem a mais não é obrigado. E assim seria se os adeptos vissem, na verdade, que todos no Benfica estariam a dar verdadeiramente o que têm. Mas será que estão os jogadores do Benfica, como diz Lage, a dar tudo o que têm? Ou estarão a dar tudo o que o têm... agora?! E o que têm agora não será menos do que deveriam ter? Serão só os adeptos, e os analistas em geral, que veem o Benfica jogar menos do que devia ou será que Bruno Lage também vê e não quer dizer? Será que no Benfica toda a gente acha que a equipa está, como diz Lage, a jogar bem, ou a jogar o que devia jogar, mesmo considerando a situação naturalmente mais invulgar em que decorre a competição?

Acreditarão os responsáveis do Benfica que os jogadores se apresentaram nas melhores condições físicas e mentais para este último terço de Liga? E acreditarão todos que o treinador vai ser capaz de colocar a equipa a jogar ao nível que se exige a um campeão nacional?

No que eu acredito é que se o alemão Weigl não tem feito aquele bom golo de cabeça que fez, já ao cair do pano, em Vila do Conde, talvez Bruno Lage não fosse já hoje o treinador da equipa principal do Benfica. Em todo o caso, e pelos sinais que se vão recolhendo, é muito provável que não passe desta época. Ver-se-á que luz chegará do fundo do túnel!

CLARO que pode ainda o Benfica ser campeão e se for campeão, Bruno Lage torna-se bicampeão, o que será verdadeiramente extraordinário depois de tudo o que tem vindo a acontecer. A verdade é que o FC Porto também está a jogar bem menos do que se esperaria, apesar de ir conseguindo, ainda assim, pisar mais no acelerador do que o rival da Luz. Parece Sérgio Conceição, por outro lado, estar também a sofrer um bocadinho desta espécie de hipnose que tem atingido Bruno Lage, porque também Sérgio Conceição parece ver na equipa portista bom jogo e boa dinâmica onde mais ninguém vê. Muito sofrível esteve o dragão na primeira parte na Vila das Aves e nem foi capaz de aproveitar uma grande penalidade inacreditavelmente oferecida muito em particular pelo videoárbitro Bruno Esteves, precisamente o videoárbitro que o Conselho de Arbitragem viu durante a semana ser enxovalhado pelo FC Porto, através de um dos seus canais de comunicação oficiais, e mesmo assim decidiu mandar diretamente de Portimão (onde foi VAR do Portimonense-Benfica) para a Vila das Aves (que recebia, só, o líder FC Porto), acompanhando de novo o árbitro Carlos Xistra, a quem ainda se pode, apesar de tudo, desculpar o equívoco que o levou a assinalar o dito penálti a favor dos dragões, mas dificilmente se pode desculpar que não tenha tido o rigor de ir, ele próprio, ver as imagens.

De equívoco em equívoco, não foi apenas Lage que pareceu ter voltado a equivocar-se no onze para Vila do Conde (e agora, voltará Seferovic a titular?); foi também Sérgio Conceição, que viu o FC Porto quase dar 45 minutos de avanço com o Aves, tal a inoperância e falta de ligação do jogo da equipa enquanto não chegaram pesos mais pesados como Soares, Marega ou Aboubakar.

Podendo elogiar-se, e muito, o trintão brasileiro Fabio Szymonek, dono, e nessa noite senhor, da baliza do Aves, não pode deixar de se reconhecer que continua também o FC Porto a mostrar-se igualmente abaixo do que já mostrou valer esta época, seja lá - tal como no Benfica - porque muitos jogadores se têm estranhamente apresentado em deficiente condição física e anímica, seja porque - tal como no Benfica - se consegue nestas circunstâncias disfarçar menos alguma falta de classe, seja porque o treinador - tal como no Benfica - não está a conseguir criar suficiente harmonia na equipa.

DIRIA um chef de cozinha que falta ao jogo do FC Porto e ao jogo do Benfica aquilo que, no caso de um prato de comida, se considera que une os diferentes elementos. Na cozinha, define-se muitas vezes o molho como aquilo que une o que o chef apresenta no prato. No futebol, o molho é a química e a harmonia criadas pelo treinador.

Tal como no caso de um chef, criar essa união é, no futebol, trabalho do treinador. Ele treina os jogadores e treina a equipa, passa-lhes a ideia que tem do jogo que deseja ver jogado, define o trabalho e a ação de cada um, e, no fim, tem de encontrar forma de ligar todos os elementos, criando essa química e harmonia, táctica e emocional, que fazem com que o todo seja mais forte do que a soma das partes. Se FC Porto e Benfica continuarem, nesta retoma do campeonato, a debater-se, porém, com as dificuldades reveladas até aqui e continuarem com futebol bem menos atrativo e entusiasmante do que os adeptos esperariam, quase mereciam que se encontrasse não um campeão por decreto, mas um decreto para não haver campeão.
Era bem feito!