O clube de cada um
HÁ duas verdades que tenho como certas: a primeira é que é raro o português (que goste de futebol) que não tenha simpatia por uma equipa. Pode ser a do bairro onde mora ou da terra onde nasceu, mas o coração está lá. Fiel e seguro. Amarrado.
A segunda é que, além dessa, é também natural que seja simpatizante/adepto de outra, maior, de expressão nacional ou dimensão distinta. Esta verdade faz parte da nossa identidade. Faz parte da cultura de um país que se habitou a ver no futebol o expoente máximo da sua paixão e liberdade, da sua latinidade.
A ligação ao clube começa cedo, geralmente por influência familiar. Começamos a ser deste ou daquele sem sequer darmos conta, antes até de nos caírem os primeiros dentes de leite.
Depois, com o passar dos anos, surgem os vizinhos, colegas e amigos, que podem ou não toldar esse encanto, levando-nos para outro, porventura vencedor e melhor sucedido à data. Chegados a adultos, temos essas (e tantas outras) opções bem definidas. Estão alicerçadas em raízes sólidas que construímos ao longo da nossa infância e adolescência.
A constatação pretende ligar esta evidência aos cargos que algumas pessoas (como eu) vêm depois a desempenhar na indústria do futebol. Hoje é quase garantido que qualquer jogador, árbitro, treinador, dirigente, jornalista ou comentador tem um clube do qual gosta particularmente.
Podem ou não assumi-lo para o exterior (em Portugal essa honestidade tem um preço muito alto, infelizmente), mas dificilmente o negarão em privado, até porque isso é normal. Perfeitamente normal. Anormal seria atuarem de forma a que essa preferência adulterasse a sua isenção profissional.
Imaginem o que seria um jogador marcar deliberadamente um auto golo só para perder o jogo contra a equipa do seu coração ou um treinador abordar um jogo com displicência tática para que o adversário - do qual é sócio há décadas - saísse vitorioso.
Impensável. Seria impensável porque, por princípio, as pessoas são sérias e íntegras. São honestas e profissionais. E pessoas assim, com valores firmes, são imunes a tudo o que seja exterior, a tudo o que belisque a sua ética e idoneidade.
Essa verdade aplica-se não só a atletas e técnicos como também aos árbitros, que a única coisa que realmente desejam antes do apito inicial é que jogo lhes corra bem e que ninguém os chateie no final. Também os jornalistas e comentadores são, por princípio, assim. Desempenham a sua missão com neutralidade e compromisso. Se assim não fosse, não seriam nem uma coisa nem outra: seriam fantoches e marionetas ao serviço de alguém e isso, além de feio e bastante visível, seria deontologicamente perverso.
Em 2020, seria bom que se confiasse mais na honestidade das pessoas e menos nos fantasmas que habitam no sótão poeirento de certas cabecinhas. Parece-vos bem?