O cheiro do poder
Os ‘cérebros’ deste movimento no Benfica, para mim, o que querem é assumir o controlo da sua riqueza patrimonial e da sua estabilidade financeira
ENTRE a presidência de José Ferreira Queimado, no seu segundo mandato (maio de 1977 a maio de 1981), e a de Manuel Damásio (janeiro de 1994 a outubro de 1997), em vinte anos bem medidos, tive o privilégio, por dever profissional, de fazer a cobertura jornalística de não sei quantas assembleias gerais do Benfica, ao vivo, sem filtros, nem pressões. Foram dezenas, contadas aos leitores quase ao detalhe e muitas delas inacreditavelmente longas que terminavam, não raras vezes, já madrugada profunda.
Reuniões muito participadas, ora tranquilas, ora agitadas, controversas, turbulentas, por vezes excessivas, como se verificou, por exemplo, quando um grupo de associados exigiu a demissão de Fernando Martins. Viveram-se períodos de elevada tensão, a raiar o descontrolo e de iminente confronto físico. No limite, porém, ouvia-se uma voz vinda da mesa da presidência que proclamava: ‘meus senhores, isto é o Benfica!’.
O efeito tranquilizador era imediato. Ainda não encontrei uma explicação razoável para os capítulos que se seguiam, porque sempre me pareceu mágico aquele fenómeno: o ambiente serenava, a paz voltava, a assembleia prosseguia como se nada de grave tivesse acontecido e, no final, os desavindos justificavam-se e abraçavam-se. Poderiam divergir nas opiniões, mas era férrea a convergência na proteção dos superiores interesses do emblema da águia.
Nesse tempo de assembleias abertas, quem subia à tribuna para usar da palavra encarava o momento com solenidade. Poderia falar em tom exaltado, característica de alguns notáveis oradores que tive o prazer de escutar, mas ao menor excesso no verbo o presidente da mesa recomendava moderação e respeito pelas assistências geralmente numerosas, o que era imediatamente acatado com um pedido de desculpas.
Hoje, não é assim, bem pelo contrário. Vivemos numa época de assembleias realizadas em circuito fechado, em que os jornalistas, a quem compete o dever de informar, sentem-se obrigados recorrer a esquemas vários, com os perigos de aí inerentes em termos de rigor, de modo a protegerem-se da incompreensão alheia e tornearem os bloqueios impostos pelos clubes que do meu ponto de vista ferem o espírito da Constituição.
PERMITI-ME a este introito para sustentar a lastimável imagem que esta última assembleia do Benfica deu do clube, pela leviandade de alguns associados, como aquele orador que disse o que lhe apeteceu e ele próprio decidiu pôr a votação o que queria ver aprovado. Pretensão recusada pela mesa, obviamente. Como protesto, o referido senhor reagiu, levantando o braço aos gritos de ‘ditadura, ditadura’. Este é apenas um caso pindérico que pode retratar o que terá sido uma reunião de sócios bem ensaiada nos cânticos e naturalmente condicionada no uso da palavra, por razões que até um miúdo entenderá.
Além de ter sido vedado o acesso aos jornalistas, o canal de televisão do Benfica, por motivos que me escapam, por não serem da minha conta, optou por não acompanhar o evento em direto, naturalmente com o devido enquadramento editorial, e, ao ignorá-lo, deu total liberdade para que no sistema de esgotos das redes sociais se pudessem expelir cenas e declarações à vontade do freguês. Pelo que me foi permitido perceber, as mais céleres a chegar ao mercado, que estava ansioso por novidades, coincidiram no propósito de passar para o exterior um quadro negativo sobre quem presidia à assembleia, em particular, e dos órgãos sociais do clube. Sem um contraditório credível corre-se este risco.
NÃO sei se António Pires de Andrade, presidente da Mesa da Assembleia Geral, foi inábil na condução dos trabalhos, mas sei que revelou firmeza bastante para não se intimidar face à jactância dos movimentistas e não abdicar do exercício da autoridade que o cargo lhe concede. Se a exerceu bem ou mal é outra questão, mas quando o atrevimento é demasiado e as pessoas ficam inebriadas pelo cheiro do poder que querem alcançar, seja de que maneira for, é preciso fazer uma chamada de atenção aos que se julgam os novos donos da verdade e, ao mesmo tempo, incutir confiança no sócio anónimo e sofredor, garantindo-lhe que o futuro do clube não será decidido na rua. «Já que cheguei até aqui, irei organizar com todo o sentido de responsabilidade, com clareza e transparência, a assembleia geral eleitoral», afirmou ao jornal A BOLA.
A instabilidade existe e é suscitada por quem não olha a meios para atingir um fim, mas a autoridade continua a ser exercida de dentro para fora, apesar de todas «as faltas de educação» que o incomodam: esse mérito deve ser-lhe endereçado.
O nível pouco recomendável desta assembleia não me surpreendeu. Podia ter sido pior, mas não se pense que o ambiente vai serenar. Os cérebros deste movimento dizem uma coisa e pensam noutra. Desdenham a obra de Luís Filipe Vieira, como convém, misturam alhos com bugalhos e têm tentado fragilizar a figura de Rui Costa desde o primeiro dia da nova era. Fazem-no não por amor à instituição nem para salvaguardar o seu bom nome; tão somente para assumirem o controlo da sua riqueza patrimonial e da sua estabilidade financeira. Em circunstâncias tão favoráveis, a oportunidade é única.