O anjo da guarda
A conjuntura parece ser amiga do leão, perspetivando-lhe a aproximação aos dois emblemas que dividem entre si os campeonatos
FREDERICO Varandas decidiu com inteligência ao rever o contrato do seu treinador, tornando-o um dos mais bem pagos na Liga portuguesa e protegendo-se da cobiça alheia, porque o futebol é o momento e os resultados, como argutamente assinalou Rúben Amorim, é que determinam os valores de mercado.
Em período atípico, como é moda dizer-se, por força da pandemia, o Sporting emergiu da penumbra com uma pujança extraordinária, afirmou-se com uma força de acreditar espantosa e surpreendeu os oponentes, sem exceção. A ninguém passaria pela cabeça que uma coisa como esta pudesse acontecer, pela razão simples de ninguém ter dado crédito aos envergonhados sinais de mudança emitidos pelo futebol leonino ainda na época transata.
Sim, havia um treinador novo que foi mais tema de notícias pelos contornos da transferência de Braga para Lisboa, e dos euros que lhe estiveram associados, do que propriamente pelo trabalho desenvolvido, quase pé ante pé para não chamar a atenção da vizinhança, com minuciosa limpeza de balneário, no bom sentido do termo, excluindo os que no seu entendimento não se integravam no projeto de raiz que estava a ser arquitetado e recorrendo à juventude talentosa da formação do clube.
O que o Sporting começou a fazer de revolucionário em 2019/2020 apenas agitou ao de leve a curiosidade enfastiada dos adversários, sem exceção, tanto mais que na derradeira jornada, no dérbi da capital, o Benfica foi mais forte e, no Minho, o SC Braga derrotou o FC Porto, empurrando o leão para o quarto lugar. Ou seja, o costume, terão pensado…
Foi um erro de avaliação tremendo, como a classificação de hoje demonstra, respaldada em vantagem invulgar e convincente. O Sporting é o mais forte, tem-no sido até agora e, quase de certeza, vai continuar a sê-lo. Admite-se uma reação dos perseguidores imediatos, a que poderá corresponder alguma quebra leonina nesta ponta final, mas nada de verdadeiramente arrasador que possa colocar em risco a liderança da equipa trabalhada por Rúben Amorim, um treinador em início de carreira, mas bem preparado, excelente na arte de comunicar, atributo relevante no futebol moderno, de promissor futuro e que, como já escrevi, mais cedo do que tarde, será convidado por uma das principais ligas europeias.
Entretanto, foi ele o anjo da guarda que Frederico Varandas descobriu para se proteger de vendavais, entregar o futebol a quem sabe e, como presidente, arranjar tempo para curar feridas, esbater divergências e promover a concórdia na família leonina, se for esse o seu propósito.
S ÃO auspiciosas as condições para o Sporting repensar o presente, redefinir estratégias e deixar de ser o parente pobre que só é capaz de ganhar campeonatos quando águia e dragão se distraem.
João Rocha foi o presidente que teve a noção dessa fatalidade e a combateu com todas as forças. Nos seus mandatos, o clube foi por três vezes campeão nacional, mas as energias faltaram-lhe e abdicou da presidência devido a problemas de saúde, consciente de ter andado anos a pregar no deserto, ao alertar para o perigo que, aparentemente, só ele conseguiu enxergar. Recordo-me de, numa conversa com pequeno grupo de jornalistas (quando os presidentes conversavam com os jornalistas sem controladores à vista), ter traçado com admirável intuição o longo tempo de trevas por que o Sporting iria passar.
Os seus receios confirmaram-se, nomeadamente a despromoção do leão para terceiro na hierarquia do futebol luso, e ainda hoje me interrogo por que estranho motivo ninguém o apoiou. Se calhar, o tribalismo pacóvio teve mais força, com as consequências que estão à vista de quem quiser ver: desde a temporada de 1981/1982, só mais dois campeonatos conquistados (2000 e 2002); o que ainda decorre, poderá ser o terceiro, em 39 anos, à média de um título de campeão nacional em cada treze anos…
A conjuntura parece ser amiga do leão, perspetivando-lhe a aproximação aos dois emblemas que nas últimas décadas se acostumaram a dividir entre si as vitórias nos campeonatos:
1. O dragão, por causa de gastos descontrolados, foi obrigado a travar a fundo no reforço do plantel. Sérgio Conceição tem sido um autêntico campeão na arte de fazer muito com pouco, mas a manta está curta e a equipa espremida, embora mantendo uma atitude competitiva notável e que explica, por isso mesmo, presença em Turim, esta noite, para discutir com a Juventus a passagem aos quartos de final da Liga dos Campeões.
2. A águia atravessa uma espécie de processo metamórfico, mas pouco entusiasmante. Pode ser que a situação evolua favoravelmente, mas convém que a massa adepta encarnada se prepare para um jejum prolongado em função da intermitência dos sinais que vão sendo emitidos e da fragilidade da narrativa que os suporta. Em termos de objetivos, a época está limitada a um lugar na Champions e à Taça de Portugal. Falhar o primeiro será trágico do ponto de vista financeiro; ganhar o segundo será o alívio da dor sem curar a doença.
Em conclusão, 2021 pode ser o ano de projeção do leão. Assim Frederico Varandas saiba lucrar com esta convergência astral que lhe é favorável.