Novos tempos, novas armadilhas

OPINIÃO26.10.202106:05

Há contactos que em campo são aceitáveis mas vistos na TV parecem faltosos

E STE fim de semana, os jogos de FC Porto, Benfica e Sporting - em Tondela, Vizela e Alvalade, respetivamente - tiveram vários lances que dariam muita discussão se tivessem tido impacto claro, direto e relevante nos resultados finais. Isso só não aconteceu porque os três venceram, venceram bem e para a história não ficou qualquer arbitragem com influência perversa no marcador.
Não estou a falar de situações técnicas claras e factuais, que só o olhar apaixonado (e tantas vezes irracional) de uns quantos consegue distorcer. Refiro-me  àqueles lances mais chatos, para os quais se olha uma, duas, três vezes e não se consegue garantir, com sinceridade, se a decisão do árbitro foi ou não a ideal.
Em Tondela, mão na área de Neto Borges, um toque inadvertido de Zaidu e um lance discutível de Pepe; em Vizela, um contacto de Méndez no pé de Veríssimo; em Alvalade, um ou outro amarelo forçado pelo jogador alegadamente carregado. Nada de grave, nada que não se repita todos os fins de semana.
O futebol é, de facto, fértil em momentos dúbios e de análise muito sensível, mas a verdade é que a evolução recente de algumas tecnologias (nomeadamente a da qualidade das transmissões televisivas) transporta-nos para outra realidade. Para uma realidade de maior visibilidade, de transparência absoluta, em que tudo é cristalino. Por vezes, demasiado cristalino.
Não me interpretem mal: o jogo deve ser analisado com qualidade e com as melhores ferramentas possíveis. A questão não é essa. O problema é que o excesso de minúcia e  o detalhe a mais às vezes enganam. Criam falsas percepções. Distorcem a realidade prática. E isso é perigoso porque muitas vezes é através delas que fazemos juízos de valor. Juízos que, na verdade, podem afetar a justiça do que se diz e faz.
Há lances - como os tais que vimos na jornada passada - que acontecem de uma forma e são transmitidos de outra. Um exemplo: há contactos entre jogadores que em campo são aceitáveis, mas que vistos através das imagens televisivas parecem claramente faltosos. Há nelas demasiada verdade laboratorial, mas não esqueçamos... o jogo é dinâmico e humano. Tem movimento, existe de verdade. Por vezes é muito difícil - até para quem, como eu, tem por missão analisar e comentar arbitragens - perceber quando é que a imagem excede a realidade e quando é que fica além dela... mas, acreditem, isso acontece. Não sempre, mas acontece. Quem nunca jogou, treinou ou arbitrou em alta competição, quem nunca esteve lá dentro, poderá não entender isso. Mas quem conhece o jogo por dentro sabe que a ilusão que muitas vezes se cria numa imagem pode ser perversa. Isso acontece sobretudo em lances de contacto, na intensidade das cargas, nos toques com o pé/perna, nos encostos, etc.
O meu conselho é que, perante situações dessas, não se apressem a julgar o julgador.
Se o incidente for subjetivo, se a jogada não for clara, se a imagem sugerir algo que não é 100 por cento factual, algo que possa gerar discussão, tenham o bom senso de aceitar e respeitem a posição de quem tem legitimidade para decidir. É uma questão de confiança, de tolerância e até de educação. Não é fácil, sobretudo quando o coração afeta a razão, mas perante realidade incerta, essa é a escolha certa. A culpa do ruído não é apenas dos jornalistas e de quem anda lá dentro. O adepto comum também tem papel fundamental a desempenhar nessa matéria. Comecem por aí, na capacidade de discernir aqueles momentos.