No ‘day after’, bilhetes muito baratos, para estádios cheios. O futebol é dos adeptos!

OPINIÃO06.04.202002:20

Na última sexta-feira o dia acordou solarengo e convidava a tudo menos a ficar em casa. A meio da manhã fui à janela da frente, surpreendi-me com o movimento de carros e estranhei que andasse tanta gente na rua, entre filas para farmácia, para o multibanco ou para o supermercado, para além dos passeadores de canídeos. Fui então alertado por um barulho estranho, que me levou à janela da cozinha, que dá para um jardim soberbo, com nome de jornalista excelentíssimo, Fernando Pessa. E o que era esse ruído anormal? Nada mais nada menos do que um carro da polícia, em alta voz, a alertar um grupo de meninas para a impossibilidade de estarem a gozar de uma aula de fitness ao ar livre, umas em cima das outras, salvo seja. Rebéubéubéu para cá, rebéubéubéu para lá, chegaram a um acordo e cada menina (eram quatro) lá foi ginasticar para um sítio suficientemente longe das parceiras. A saúde pública ficou salvaguardada, mas eu fiquei a desejar por dias de chuva, que mantivesse as pessoas em casa. Se não vai a bem, vai a mal e o importante é que nos mantenhamos focados no objetivo (até parece que estou numa flash interview) e consigamos derrotar o inimigo, sem vacilar. Parece-me que o apelo do sol tem o efeito de tornar atual uma frase atribuída a Óscar Wilde: «Resisto a tudo, menos às tentações…» Ainda bem que ontem foi dia de chuva!

As novas rotinas conduziram-nos a um horário televisivo diferente. Antes era às 10 h a etapa do Dubai do European Tour de golfe, às 14 h o Open de Barcelona em ténis, às 18 h o resumo do Paris-Roubaix em ciclismo, às 20 h o Liverpool-Tottenham da Premier League, às 23 h o Flamengo-Vasco da Gama do Brasileirão e a partir das duas da manhã os LA Lakers contra os Boston Celtics, da NBA.
Agora, às 10.30 h é o briefing da Proteção Civil espanhola, ao meio-dia é a intervenção da Diretora Geral de Saúde portuguesa, às 16h entra em cena o porta-voz de Boris Johnson, a fazer o ponto de situação diretamente de Downing Street, uma hora depois vemos a conferência de imprensa do governo italiano e a partir daí ficamos atentos a qualquer disparate que Jair Bolsonaro possa disparar (é assim um pouco como o mais famoso géiser de Yellowstone, o Old Faithful, que nunca falha) e às imperdíveis intervenções de Donald Trump, rodeado de uma grupo de trabalho que vai abanando a cabeça desaprovadoramente, à medida que o presidente dos Estados Unidos avança em divagações sem sustentação científica.
E o mais estranho é como nos aculturamos a estas rotinas estapafúrdias, fazendo jus ao postulado que nos identifica como animais de hábitos.
P.S. - Há sempre a possibilidade, para matar o vício, de ver o campeonato da Bielorrússia, a Taça do Tajiquistão, mas ou me engano muito ou o resultado desses jogos de onze contra onze vai ser a derrota da saúde pública.

Vários clubes, alguns com tremendo músculo financeiro, já chegaram a acordo com os jogadores - aqueles que levam a parte de leão da massa salarial - para reduções de vencimentos enquanto durar a crise. Outros, inevitavelmente, por mais que procurem resistir, estarão condenados a seguir-lhes os passos, entrando na antecâmara de um futebol que irá pagar diferente, para menos, daqui em diante. Não sei quanto tempo irá demorar essa nova frugalidade salarial, mas terá o condão de, pelo menos, atrasar os planos galopantes para a instituição de um campeonato de ricos a nível europeu, projeto que já não verá a luz, como estava previsto, em 2024. Talvez mais tarde a ideia seja retomada, mas neste preciso momento, o problema do Covid-19 pode abrir uma janela de oportunidade aos clubes portugueses que lhes permita voltarem-se a aproximar dos melhores emblemas do Velho Continente. Para quem já mostrou ser suficientemente imaginativo para inventar, ao longo de décadas, receitas com rifas, bilhetes de candonga, bingos, bombas de gasolina, ações de empresas cotadas em Bolsa que não têm por objetivo gerar dividendos, ou vendas de direitos desportivos de jogadores ainda em fase de projeto, resistir ao pós-Covid-19 será apenas mais um desafio.

Desta crise resulta uma reflexão, de que brota uma resposta cristalina e irrefutável à pergunta, qual é a coisa mais importante no futebol? Os clubes? Os jogadores? E entre estes, as mega vedetas? Não, o que há de mais relevante no futebol não é nada disso. O mais importante é a paixão dos adeptos pelo jogo, que os faz mover montanhas e manter uma fidelidade sem par. Eles são o princípio e o fim, a alma do desporto que conquistou o Mundo, a garantia da eternidade do «beautiful game». Por isso, na fase de aperto que inevitavelmente se viverá, uma vez superada a crise do novo coronavírus, são eles que vão salvar o futebol. E é preciso que o próprio futebol, ou seja, quem nele manda, entenda que são os adeptos o que há de mais importante, os únicos verdadeiramente insubstituíveis.
Mais do que devolver aos profissionais o nível salarial que auferiam, ou dotar os clubes de infraestrutura supérfluas, ou ainda forçar um novo paradigma, sem público nas bancadas, apenas câmaras de televisão, a única coisa que verdadeiramente vai importar é criar condições para que os adeptos regressem aos estádios e retornem ao convívio do jogo. E isso só poderá ser feito, em ambiente de recessão económica, através de políticas de preços baixos, para os ingressos e para o merchandising. A tentação de promover a elitização do jogo através de uma segregação económica, não pode vingar, o futebol é o que é por ser um desporto popular e deve manter os estádios acessíveis àqueles que representam a sua maior mais-valia: os adeptos.

Talvez seja pedir demais que, uma vez terminado o período de confinamento, e quando a real importância das coisas for colocada em perspetiva (o futebol não sairá de onde deve pertencer, como a coisa mais importante das coisas menos importantes das nossas vidas), desapareçam do espaço público os instigadores de ódio, oficiais e oficiosos, que usam o futebol para fazer dos adversários, inimigos. Os clubes têm, neste particular, um papel determinante, quer açaimando os assalariados, quer censurando quem em sua defesa diz falar. Embora esta peste não seja exclusiva do espaço televisivo, é nele que se desenvolve com mais facilidade, propaga e infeta a sociedade. Também, neste aspeto, as direções de informação podem ter um papel importante, se optarem por ir à procura de audiências de uma forma menos primária e mais construtiva.
Este momento de viragem que todos vivemos pode ajudar quem, como é o caso do presidente da FPF e do presidente da Liga de Clubes, pretende uma indústria do futebol em Portugal que abandone os comportamentos autofágicos que a tem caracterizado.

Finalmente, uma palavra de louvor à UEFA, que se tem batido pelo princípio do mérito desportivo como único fator para a atribuição de títulos.
Agora, resta-nos aguardar e perceber em que preciso momento será possível implementar um dos vários calendários alternativos que estão em cima da mesa, para melhor balizarmos a situação.