Natal, férias, família e futebol
A época de Natal, que se estende até ao Ano Novo, é um tempo de família. Sempre o foi e, mesmo agora, que os iPads e os iPhones fazem mais parte da família chegada aos jovens do que os pais e os avós, o Natal permite, não raras vezes, a maravilhosa exceção do convívio, que se opõe à habitual cultura do sozinho em casa.
Ora, é por o Natal ser um tempo de família, que o circo deita a cabeça de fora espreitando o sonho da sobrevivência, cada vez mais ameaçada, sobretudo agora que foram proibidos os animais amestrados, em nome de uma nova moral ecossanta.
E é por o Natal ser um tempo de família que os ingleses inventaram o boxing day, levando aos estádios o futebol espetáculo com toda a magia dos seus artistas.
Faz sentido. O futebolista pode e deve ser visto como um ator e como um artista. Alguns, aliás, exageram na arte cénica e enganam mais os árbitros do que entretêm criancinhas, mas, de uma maneira geral, pode dizer-se que faz todo o sentido que o futebolista atue nos estádios num tempo em que as famílias podem estar juntas e em festa. Convenhamos que faz mais sentido ir ao estádio num dos dias de férias natalícias, às três da tarde, do que às oito e meia da noite de um gélido mês de inverno, num dia de semana e em tempo de trabalho e de escola.
Porém, em Portugal, decide-se, quase sempre, contra factos, porque, pelo menos, evitam-se argumentos. É assim, porque é assim. No tempo de férias, nada de mais bem pensado do que fazer parar o futebol e oferecer aos jogadores umas férias retemperadoras, porque são trabalhadores por conta de outrem e, assim sendo, também têm o irrecusável direito ao descanso.
Lamento, mas não partilho dessa bondade natalícia. Em parte porque, ao longo da minha vida, muitas vezes trabalhei no dia de Natal, apesar do mundo poder passar bem sem que eu desse notícia do que nele se passava. Faz parte da vida. Fosse eu médico, como minha mãe sonhava, fosse eu comandante de avião, simples marinheiro de barcos oceânicos, ou, mais simplesmente, portageiro e teria de me conformar que a celebração do nascimento do menino Jesus acontecesse sem a minha gloriosa participação na devastação de bacalhaus e de perus, pelo menos enquanto as ecossantidades nos consentirem a crueldade.
Ora, o futebolista tem por natureza principal da sua missão no mundo, a de entreter os papalvos que gostam do jogo da bola, sendo que o seu primeiro interesse é que haja o estimável público.
Como, em Portugal, esse público está cada vez mais refastelado nos sofás a ver jogos de futebol dos futebolistas que, em outros países, não tiveram o prazer de descansar, temo que, não muito remotamente, haja mais jovens do Manchester City do que do Benfica ou do Porto, e mais jovens do Tottenham do que do Sporting ou do Braga.
Aliás, um dos problemas maiores do futebol português é que todos estão sempre muito cansados. Porque jogam duas vezes por semana e porque os cansa terem de fazer muitos quilómetros dentro do nosso querido e amado quintal ibérico, como se fosse realmente possível fazerem-se muitos quilómetros sem se sair de Portugal.
Tudo é pretexto para estar fora de jogo. O desgaste da condição humana, o direito às férias, a tradição familiar. E, no entanto, o jogo de que se fala é, precisamente, um espetáculo que vive dos tempos de lazer dos cidadãos que se deleitam mais com futebol do que com o teatro, que, por ironia, tem atores que sonham em poder trabalhar muitas e muitas vezes com um público entusiástico como aquele que, com alguma legítima inveja, veem no futebol.