Na bola com elas...

OPINIÃO26.07.202306:30

O que história de um século tem a ver com as navegadoras e com o futebol fora de campo

TENDO, no final da I Guerra Mundial, a FA proibido que se fizessem, por Inglaterra, mais jogos femininos no seu seio (rumorejando-se que o fizera por receio de que a sua popularidade «ofuscasse o jogo no masculino») não deixaram de se ver, rebeldes, equipas a manterem-se em campo (por lá e por França...) - e, ante notícia de que esse furor não se estrangulara, da edição de 14 de fevereiro de 1920 do Football (que se publicava em Lisboa) saltitou, em letras garrafais, a pergunta (marota):

- A mulher deve ou não deve jogar football?

e sendo rotundo não! a resposta - juntou-se-lhe, escondida no seu subterfúgio, uma das razões:

- ...o running, o kicking, o twisting, o turning desenvolvem os tornozelos a tal ponto que torna as mulheres pouco estéticas. E os esforços intensos para se apoderarem da bola ou atingirem a rede provocam contrações do rosto que, repetidos amiúde, lhes originam rugas e traços desagradáveis(!)

Antes já o Football (o jornal de Lisboa) lhe notara outros «incómodos» (na defesa da ideia da sua proibição por Inglaterra - e mais…):

- A exposição da mulher ante uma multidão num traje que denuncia os mais pequenos traços das suas formas, as suas belezas e incorreções, praticando exercício que obriga a atitudes e a posições mais ou menos grotescas, encerra qualquer coisa que desmoraliza e perverte. A mulher de calção a correr atrás duma bola, pulando aqui, caindo acolá, deprimia-se, bestializava-se - e o football, deste modo, pervertia, despertava unicamente os sentimentos de animalidade…

Havendo quem, todavia, não se deixasse convencer por tais destrambelhos (em «botas de elástico») - não havendo mulheres a atreverem-se a jogá-lo por cá - houve quem se atrevesse a trazer cá duas equipas francesas (por outubro de 1923) - e foi de forma esfusiante (mas escandalosa) que turba as recebeu nos Restauradores, levando a que se escrevesse no Diário de Notícias: «Deve ser deplorável a impressão que estas dezenas de raparigas ontem chegadas a Lisboa terão recebido de todos nós, devido à atitude incorretíssima, selvagem, de centenas de indivíduos pertencentes à esperançosa mocidade dos desportos, que foram à estação de comboios para lhes armarem uma verdadeira montaria! Simplesmente indecoroso, tudo aquilo na gare, nas escadas e na rua»…

Dando o Diário de Lisboa a sua primeira página ao caso, a crónica da chegada (e da escaramuça) escreveu-a Almada Negreiros (juntando-lhe vários desenhos). Chamou-lhe Nenette ou o foot-ball feminino - apanhando-se-lhe a dado passo:

- O que é aquilo?

perguntou uma senhora nacional com um chapéu à moda de Paris e uma obesidade tremenda desde as bochechas até aos tornozelos errados.

- São as jogadoras de foot-ball.

- Cavalonas! Mais valia que fossem aprender a coser!

Depois, foram três senhoras elegantes descendo a Avenida da Liberdade:

- São as jogadoras de foot-ball!

- Parece impossível! Agora até o foot-ball!

- Daqui a pouco os homens têm que aprender a coser!

Sobre o jogo propriamente dito, desconcertante e poético (mas moderno) continuou o olhar de Almada: «Foi muito mais cheio de interesse do que tinha imaginado, mas a mais interessante de todas as jogadoras era precisamente a que jogava pior - e isto só pode acontecer no foot-ball feminino... »

Fora o Sporting (jornal do Porto) quem trouxera as francesas a Portugal. Enchendo-se o Bessa para as ver jogar (não, não foi só isso: antes do jogo todas fizeram várias provas de atletismo) - destrato e acrimónia não deixara igualmente de notar-se à sua chegada  a São Bento: «Os que insultavam, que enxovalhavam indecorosamente as nossas hóspedes, não eram a ralé da nossa gente. Era gente engravatada e bem enfarpelada, que nos seguiu ladrando, como cães leprosos seguem uma caravana». Sim, isso escreveu-se no Sporting - com o o cronista a fechar o seu escrito num insinuante remoque: «… rematando mal algumas, e pontapeando sem direção, as francesas deram-se, afinal, a um facto muito comum nos nossos grupos masculinos…»

Talvez ninguém imaginasse os anos (e as lutas...) por que foi preciso passar-se no tempo para que Portugal pudesse ter o que tem enfim: seleção feminina a bater-se com as melhores do mundo. Por isso, aconteça o que acontecer no Austrália-Nova Zelândia elas já ganharam (de goleada) não apenas o nosso respeito mas sobretudo a nossa admiração. E tantos e tantos anos volvidos, no futebol dos homens que se joga fora dos relvados o que ainda não se perdeu foi o espírito «indecoroso» (e pior, se se quiser...) daqueles que trataram as mulheres no futebol como as trataram há um século - a bailar na língua de tanta gente de agora e não apenas de Pinto da Costa...