Mais Bernardos, por favor

OPINIÃO17.02.202205:30

É injusto que numa sociedade de comunicação os jogadores sejam substituídos pelos guerrilheiros da palavra

É , desde que Cristiano Ronaldo começou lentamente a perder o estatuto de extraterrestre, o melhor jogador português da atualidade. Encontrou na galeria do Manchester City o contexto certo para expor o talento e em Pep Guardiola o mentor para ajudá-lo a elevar qualidades pouco trabalhadas num trajeto formativo que está, agora, a atingir o pináculo. Ainda anteontem, numa flash interview, respondendo a um jornalista inglês, o treinador catalão revelava: «Estou sempre a dizer-lhe: ‘Bernardo, és um jogador perfeito mas tens de marcar golos para ganharmos jogos, tens de fazê-lo’. Hoje [anteontem] ele marcou um dos melhores golos que já vi, pela técnica, por tudo.»
Num futebol sequestrado pela estatística o craque só é elevado a estrela quando descobre o caminho constante para o golo. O número 10 clássico desapareceu e aos futebolistas que há 20 anos teriam mais preocupação em assistir (e, porque não, divertir o público), como é o caso do esquerdino, hoje pede-se que resolvam. Aqueles que se adaptam são os candidatos às Bolas de Ouro desta vida enquanto os outros veem o comboio passar - vejamos o caso de Luis Díaz, por exemplo: o drible, a velocidade e a alegria sempre estiveram presentes, mas foi apenas nesta época, quando passou de um rácio de um golo a cada dois jogos (contra um golo a cada quatro em 2020/2021) que despertou verdadeiramente a atenção dos gigantes europeus. Sorriu o Liverpool.
Mas Bernardo Silva não é, apenas, mais um jogador de topo numa das cinco melhores equipas do mundo (onde incluímos Bayern, Liverpool, PSG e Chelsea). É também um dos poucos jogadores portugueses que prendem a atenção pelas intervenções que têm fora do campo. Está para o Benfica como André Villas-Boas para o FC Porto no que à militância clubística diz respeito: estejam onde estiverem, têm sempre uma palavra a dizer sobre a vida dos emblemas que amam. O jogador formado no Seixal (nunca aproveitado no futebol sénior dos encarnados) que chegou a treinar-se como lateral-esquerdo numa pré-época com Jorge Jesus foi notícia, se bem se recordam, por ter pedido, a dois dias das eleições de outubro de 2020, uma «mudança». Afirmou, entre outras coisas, que os benfiquistas «não merecem os esquemas, as mentiras, tentativas de aprovação de OPAs ilegais» e que não mereciam ter «o clube associado a centenas de processos judiciais e de corrupção, manchando de forma quase irreversível o nome do Benfica». Pedia «mais ambição, seriedade, transparência e competência». Pedia, pois, que Luís Filipe Vieira não vencesse. Recordo-me muito bem de uma grande franja de adeptos das águias que o criticaram, apelidando-o de tudo, desde oportunista a ingrato. Cheguei a ler (e não apenas na latrina das redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais) que os jogadores têm que se preocupar apenas em jogar e não devem envolver-se em discussões de natureza mais política.
Encontrei duas justificações para este tipo de reações negativas: a dinâmica tribal do adepto que tanto abre trincheiras entre clubes rivais como entre fações dentro do mesmo clube - é sociologicamente interessante estudar como a beatificação de um líder chega a ser mais forte que a defesa de um grupo - e uma desconfiança que existe em Portugal sobre os futebolistas que ousam pensar fora da caixa. Neste aspeto em concreto, acredito que seja mais pela falta de hábito porque, infelizmente, os futebolistas dos principais emblemas nacionais estão presos à previsibilidade discursiva. Tivessem os futebolistas, por exemplo, a possibilidade de falarem antes de um clássico de forma ponderada, arejada e descomplexada e acredito que boa parte do clima de animosidade baixava. Porque os adeptos apreciam não só o que eles jogam mas também o que eles dizem. É injusto que numa sociedade de comunicação como aquela em que vivemos, os jogadores sejam substituídos por guerrilheiros da palavra que pensam viver numa constante jihad.
Que bom foi ouvir Bernardo Silva pronunciar-se sobre a vergonha no clássico do Dragão. Pela acutilância e raridade, valem mais do que todos os comunicados escritos e ainda por escrever. Porque as pessoas dão valor aos artistas e não aos patéticos candidatos a curadores.