Luís Sepúlveda

OPINIÃO19.04.202004:00

Estou a chorar, sou o Zorbas, o gato grande, preto e gordo do Sepúlveda. Já não estou no porto de Hamburgo, a ronronar ao sol. Choro porque, no estranho zumbido que ouvi a despregar-se do céu, a Kengah não era, como na nossa parábola, o pedaço solto de inferno numa gaivota encardida pelo crude, a soltar o queixume do seu grasnar:

- Fui apanhada por maré de petróleo. A peste negra. A maldição dos mares. E vou morrer.

A Kengah, agora, foi apenas a pena de um murmúrio, a arrastar-se:

- Foi peste outra vez, o Luís morreu!

Largada a dor, regressou à sua eternidade, sem precisar de me pedir, como da outra vez, que não lhe comesse o ovo que largara, que lhe criasse a cria, a ensinasse a voar. Essa parte, conhecem-na: a gaivotinha nasceu, ficou Ditosa. Cresceu comigo, o Colonello, o Barlavento, o Secretário, o Sabetudo. Lutámos contra gatos provocadores e ratazanas - e o medo de voar da Ditosa. Pelo meu zelo, o meu coração, a Ditosa deixou de se achar gato e, naquela noite chuvosa, com a ajuda do Poeta, lançada do alto da torre, abriu as asas cor de prata, evitou o chão, voou (no seu destino).  À Ditosa, vi-a, depois, orgulhoso, em tantas e tantas circunstâncias, dentro de tanta e tanta gente - a voar, sempre a voar. Vi-a nos golos do Ronaldo, nas pernas do Bolt, nas mãos do Casillas, nas medalhas do Phelps. (Mesmo que não soubessem.)

Estou a chorar, sou o Zorbas, o gato grande, preto e gordo do Sepúlveda. E, nesta hora negra de peste, vim aqui para vos contar, por entre rosas de Atacama e palavras molhadas de lágrimas, que o Luís morreu mas vai continuar, velho, a ler-nos romances de amor; vai continuar, eterno, a ensinar-nos a voar. (Sim, foi ele.) A voar com as asas cor de prata que abri à Ditosa na cabeça de quem a levou, no seu voejar, do porto para dentro de si. A voar na vida que é preciso voltar a viver no golo que todos temos de marcar, na corrida que todos temos de ganhar, na defesa que todos temos de  fazer - na esperança que não se pode perder.