Justíssimo.
O longo passeio solitário na liderança (1.º desde a 6.ª jornada) produziu um dos mais belos, inesperados, surpreendentes e merecidos títulos do leão
C OM um golo de Paulinho, a contratação mais cara da história do clube, o Sporting venceu o Boavista por escassa vantagem (1-0) para o tamanho da superioridade demonstrada e assegurou o título a duas jornadas do fim. Nada mais justo: os leões foram, de longe, a melhor equipa. Embora seja jornalista há mais de 30 anos, esta é a primeira vez que comento, num jornal desportivo, um campeonato ganho pelo Sporting. Nos dois últimos títulos dos leões (2000 e 2002), a minha ligação com o desporto resumia-se a comentários de jogos internacionais, na Sport TV. Nessa altura passava muito tempo a cirandar pelo Mundo a recolher impressões para escrever reportagens de viagens para a revista que então dirigia, a Volta ao Mundo. No dia em que Augusto Inácio assegurou o título de 2000, andava a deambular pelas Terras Altas Escocesas. Lembro-me da figura intimidatória do guarda-redes Peter Schmeichel, que reduzia a baliza com um simples esticar de braços, da potência predadora do argentino Acosta e do peso que as contratações de inverno - César Prates, André Cruz e Mbo Mpenza - tiveram na segunda volta dos leões.
No dia em que Laszlo Boloni (e João Vieira Pinto, Jardel, Nélson, Tiago, Beto, Prates, André Cruz, Babb, Rui Jorge, Quiroga, Paulo Bento, Rui Bento, Hugo Viana, Pedro Barbosa, Sá Pinto, Niculae, Quaresma, etc…) assegurou o título de 2002, estava em Paraty, na costa sul do Rio de Janeiro, deliciado com os casarões de traça portuguesa e maravilhado com a exuberância da mata atlântica que emoldura as praias da Trindade, do Cepilho e do Cachadaço. Segui, portanto, esses triunfos muito à distância. Até porque não havia redes sociais e a internet não era o que é hoje.
Aliás, desde que gosto de futebol, só tenho memória de cinco campeonatos ganhos pelo Sporting. No primeiro (1974), vivia em Tomar e era um miúdo fascinado com o clima revolucionário pós-25 abril, que incluía saneamentos, sessões de pancadaria entre militantes do MRPP e do PCP, muitos feriados [quando os professores faltavam à aulas e eles faltavam muito] e muitas érre-gê-às no velhinho Liceu Nacional de Tomar (as rga’s eram intermináveis reuniões gerais de alunos em que se discutia, basicamente, a melhor maneira de exterminar a burguesia). Mas lembro-me, entre a berraria e os excessos do turbilhão revolucionário, a boa pinta dessa equipa do Sporting: Damas, Yazalde, Dinis, Chico Faria, Vagner, Carlos Pereira, Alhinho, Bastos e Fraguito, que tinha uns pés maravilhosos. Outra coisa que me ficou desse campeonato: as cornetas acústicas que transformavam os jogos no velhinho José Alvalade em concertos de heavy metal. Na rádio quase não se ouvia o relato.
Nos dois campeonatos seguintes (1980 e 1982), ainda não era jornalista, mas um estudante de Direito da F. D. Lisboa, aluno de um tal professor Marcelo que é hoje Presidente da República, e colega de um tal António que é hoje primeiro-ministro. Do título de 1980, tenho memória de uma declaração provocatória do treinador portista José Maria Pedroto, que ambicionava o tri - o Sporting são «quatro jogadores!»; parece que se referia a Jordão, Manuel Fernandes, Eurico e Inácio. Essa tirada custou-lhe caro: o Sporting, que era bem mais do que esse quarteto, ganhou o campeonato com uma campanha extraordinária (a quarta melhor de sempre), ainda por cima conduzida por um homem da casa, Fernando Mendes. Os adeptos do FC Porto ouviram muitas piadas acerca do tri, a pretexto de um sumo (Tri-naranjus) em voga na altura.
Sendo fã incondicional do futebol britânico, gostei particularmente do Sporting de Malcolm Allison (1982), o vulcânico/excêntrico treinador inglês que conseguiu compatibilizar os feitios de Rui Manuel Trindade Jordão (o artista) e aqui de António Oliveira (o nosso Cruyff), para produzir, com a cumplicidade interessada de Manuel Fernandes (o nosso Kenny Dalglish), um dos melhores tridentes ofensivos que alguma vez vi em ação. O que jogavam esses três supercraques! Muitos anos depois (1998), já jornalista, fui a Newcastle entrevistar big Mal Allison e ainda hoje tenho a impressão que essa foi a entrevista mais rica e interessante que alguém ligado ao futebol nos concedeu: o homem era um assombro e contou-me, em on e em off, histórias deliciosas desse Sporting e desses tempos - em que João Rocha era presidente.
Passou muito tempo. Mas algum dia tinha de me calhar comentar um Sporting campeão - a verdade é que tenho passado a minha carreira jornalística (de 1988 para cá) a comentar, sobretudo, sucessos nacionais e internacionais do FC Porto e, em muito menor escala, do Benfica. Este Sporting de Rúben Amorim, digo-o sem hesitação, é um dos fenómenos mais surpreendentes e inesperados da história do campeonato português, que vai na 87.ª edição. Fica na história por várias razões, entre as quais ter assegurado o título de campeão sem perder um único jogo (!), o que coloca este leão numa restritíssima elite onde só cabem o Benfica de Jimmy Hagan em 1973, o FC Porto de Villas-Boas em 2011 e o FC Porto de Vítor Pereira em 2013. Mas há mais motivos para elogiar a incrível campanha de Rúben Amorim. Por exemplo, o facto de o Sporting conseguir ser campeão um ano depois de ter terminado no 4.º lugar a 22 pontos (!) do FC Porto (maior melhoria só no Sporting de Mário Lino, que foi campeão em 1974 um ano depois de terminar no 5.º lugar a 21 pontos do Benfica…). Ou o facto de o Sporting ter ganho o campeonato com um investimento irrisório (cerca de 18 milhões) quando comparado com os muito mais de cem milhões gastos pelo rival Benfica não só em reforços mas também, e sobretudo, na equipa técnica liderada pelo conceituado Jorge Jesus. Ou o facto de o Sporting ter tido a convicção (acalentada pela necessidade, também…) de lançar, com sucesso, uma série de jovens futebolistas na equipa principal, a maior parte da formação, jovens esses cuja qualidade acabou por desempenhar um papel FUNDAMENTAL na conquista do título - quem seguiu os desempenhos de Gonçalo Inácio, Nuno Mendes, João Palhinha, Daniel Bragança, Matheus Nunes e Tiago Tomás, entre outros, sabe o que queremos dizer.
Ou, para terminar, aquilo que mais me impressionou: o facto de o Sporting ter feito um passeio solitário na liderança (agarrou-a logo à sexta jornada) não permitindo sequer uma aproximação perigosa do FC Porto - o mais perto que o campeão esteve do líder foi quatro pontos -, e o FC Porto é, apenas, uma das oito melhores equipas da Europa. A convicção e o espírito de corpo com que o Sporting sempre se bateu do primeiro ao último minuto, o que lhe permitiu ganhar uma série de jogos nos minutos finais ou nos descontos, ficam como imagem de marca de uma equipa que quis, soube e mereceu ser feliz.
Parabéns a todos os sportinguistas pelo título. Justíssimo.
AMORIM NA HISTÓRIA
RÚBEN AMORIM entra na história do Sporting aos 36 anos: nunca houve em Alvalade um treinador campeão tão novo. A invencibilidade da equipa, agora de 32 jogos, é outro recorde do treinador, que tem mais dois jogos (Benfica e Marítimo) para tentar outra proeza inédita na história do Sporting: terminar o campeonato sem derrotas. A defesa detém o segundo melhor registo de sempre, 15 golos sofridos contra os 14 do Sporting de Fernando Vaz em 1971 (vice-campeão), mas Rúben pode dizer que nas 19 equipas do Sporting campeãs esta é a que sofreu menos golos. Um recorde que não vai ser ultrapassado, quando muito igualado, é o das 27 vitórias de Jorge Jesus no campeonato (época de 2015/2016, deu vice), enquanto a maior diferença para o segundo (11 pontos, 1950/1951) ainda pode ser igualada ou suplantada.