Justiça às avessas
1 - Anda para aí um grande contentamento entre os benfiquistas com a sentença do Tribunal de 1.ª Instância do Porto que condenou Francisco J. Marques e uma empresa ligada ao FC Porto a uma indemnização de dois milhões de euros a favor do Benfica, por invocados danos reputacionais resultantes da divulgação dos famigerados emails que expuseram a impudica nudez da vida interna do Glorioso. Clube e seus apaniguados celebraram a sentença como se de uma vitória no Estádio do Dragão se tratasse. Porém, um pouco mais de literacia jurídica, de lucidez ou de boa-fé aconselhariam a olhar de perto o resultado da demanda antes de concluir sobre a verdadeira dimensão da invocada vitória. Com efeito:
- O Benfica pedia também a condenação de Pinto da Costa, demais administradores da SAD e da própria SAD do FC Porto, o que teria um óbvio peso político relevante. Porém, tudo o que conseguiram foi a condenação de Francisco J. Marques e da sociedade de que ele será assalariado. Peixe miúdo.
- O Benfica reclamava uma indemnização de 17 milhões de euros pelos danos que estimava terem sido causados ao seu bom nome: obteve 2 milhões - o valor em que o juiz estimou o valor do bom nome da «Instituição», como eles dizem.
- Pior do que tudo, ao contrário do que o Benfica andou a dizer, a sentença estabeleceu, sem margem para dúvidas, que os emails eram verdadeiros e não falsos. Isto significa que tudo o que de lá consta, aquele rol de vergonhas escrito e descrito que tanto se quis ocultar, é mesmo verdadeiro, ponto por ponto, e, pelo menos, ficará para a história, se, como tudo já o indica, a justiça que tão rápida foi a julgar a divulgação dos emails tão impávida continue a julgar o seu conteúdo. Apenas e num caso, a sentença decretou que um dos emails tinha sido truncado pelo réu - e foi-o, diga-se, de forma aliás grosseira.
Eis a vitória do Benfica. Se isto é uma vitória judicial, eu conheço derrotas mais honrosas. Sem embargo, também o FC Porto não pode cantar vitória: um seu funcionário e uma empresa de si dependente foram condenados. Não pelo crime de violação de correspondência privada (que não estava em julgamento, porque o Benfica optou pelo processo cível), mas por danos morais indemnizáveis. Porém, e com o devido respeito, a sentença condenatória parece-me absolutamente lastimável. Lastimável, desde logo, pelo português da sua redacção, arrevesado e confuso. Lastimável pela sua fundamentação jurídica, ao arrepio da jurisprudência e da doutrina, já nacional, mas sobretudo europeia, na matéria. E lastimável do ponto de vista doutrinário, na navegação que hoje é imperioso fazer entre o direito à privacidade da correspondência e o interesse público que releva sobre ele no caso dos chamados «whistlerblowers» - conforme já estabelecido por legislação expressa do Parlamento Europeu. Sem querer reconhecer o interesse público na divulgação dos emails (que julga anulável por coincidir com um interesse privado, «concorrencial» e «propagandístico» do FC Porto na sua divulgação), e não podendo até invocar a violação do sigilo da correspondência (que não estava em julgamento), o juiz acaba enredado numa teia sem saída, que o leva a exclamar que, todavia «o direito não pode encarar com os mesmos olhos a verdade e a mentira». Pelo que, sendo os emails verdadeiros e querendo ele, ainda assim, condenar os réus, só lhe restou a saída pífia de os condenar... um bocadinho. Não a 17, mas a dois milhões, assim julgando resolver uma contradição insanável.
2 - Poucos dias antes, o Tribunal da Relação de Lisboa tinha também decidido manter a prisão preventiva de Rui Pinto, igualmente acusado de violar correspondência privada - da Doyen e do Sporting. Nos dois casos estamos perante sentenças dos tribunais portugueses que vão ao arrepio de tudo o que as autoridades judiciais fazem lá fora. A perplexidade de perceber porque razão o Ministério Público português, com a concordância do poder judicial, se assanha tanto em cima de Rui Pinto, enquanto as autoridades judiciais da Alemanha, da França, da Bélgica e da Espanha recorreram aos seus serviços e aproveitaram as suas denúncias para perseguirem os crimes por ele denunciados e não o crime por ele praticado de violação da correspondência alheia, foi recentemente partilhada pela procuradora Maria José Morgado (do ‘Apito Dourado’), em artigo no Expresso. E a história do extenso rol de crimes e malfeitorias escondidos no futebol europeu, denunciado por Rui Pinto, mereceu um longo artigo de investigação e análise na revista norte-americana New Yorker, do passado dia 27 de Maio. Nesse artigo, assinado por Sam Knight, que falou longamente com Rui Pinto em Budapeste antes de ele ser extraditado para Portugal, são exaustivamente descritas as preciosas revelações que ele fez através do Football Leaks, retomadas no Der Spiegel pelo jornalista alemão Rafael Buschman. Entre outras coisas, a revelação de mais de duas dezenas de nomes de futebolistas de topo, milionários, que fugiam ao fisco; a forma como o Manchester City, detido pelo Fundo Soberano do Catar, contorna o fair-play financeiro da UEFA; o plano secreto engendrado por Florentino Pérez para impor a Superchampions dos milionários; ou até as manigâncias com comissões nos negócios de jogadores do seu e meu FC Porto. Isto, fora os negócios da Doyen ou o Cashball do Sporting. Estão a ver como ele incomoda meio mundo? A pergunta que se impõe, então é esta: quando a Relação mantém a prisão preventiva com a justificação de impedir a «continuação da actividade criminosa», os senhores Desembargadores estarão tão mal informados do que se passa que ignoram que a actividade criminosa relevante cuja continuação assim estão a impedir não é a de Rui Pinto, mas sim as daqueles que o Football Leaks denunciava?
3 - Não ignoro nem desvalorizo a objecção da violação do segredo da correspondência, que é um direito que a todos assiste. Mas como todos os direitos, ele pode conflituar com outros e é então que o julgador (e o jornalista) tem de ponderar entre os valores em jogo. Uma coisa é violar a correspondência de quem não é suspeito de crime algum; outra é fazê-lo como única forma de chegar ao conhecimento de crimes maiores e cuja divulgação é de interesse público indiscutível. Peguemos no último exemplo em data, a revelação das mensagens trocadas entre Sérgio Moro, o juiz do Mensalão, e os procuradores do caso, que mostram que um juiz supostamente e obrigatoriamente imparcial se orquestrou com a acusação para depois melhor justificar a condenação do ex-Presidente Lula da Silva a 13 anos de cadeia. Essa revelação só foi possível através do assalto ao telefone do juiz. Foi crime? Foi. Pode ele ser justificado pelo interesse público? Sem qualquer dúvida.
E indo mais atrás, lembram-se como terminou o Watergate, aquilo que finalmente deixou Nixon sem outra alternativa que não a renúncia ao cargo? Foi a decisão do Supremo Tribunal Federal de obrigar Nixon a entregar as gravações das suas conversas - privadas, privadíssimas - com os seus colaboradores, na Sala Oval da Casa Branca. Essas gravações, mesmo amputadas de 20 minutos que Nixon mandara apagar, foram suficiente para fazer prova de toda a trama em que se envolvera o Presidente dos Estados Unidos. E que só foi possível conhecer em toda a sua extensão porque o tribunal superior entendeu que o interesse público prevalecia sobre o direito do Presidente à sua privacidade. Parece que por cá ainda não demos sequer pelo Watergate. É tudo muito estranho