História sobre a nossa fragilidade
Continuando a relembrar histórias de O Senhor Calvino. Para este tempo de suspensão.
Uma história sobre a fragilidade.
O balão
OSenhor Calvino certas vezes andava uma semana inteira pela cidade levando consigo um balão bem cheio. Mantinha as suas actividades normais e diárias, sem a mínima alteração: os percursos matinais, o alto e convincente Bom-dia! distribuído a cada uma das pessoas com quem se cruzava no bairro, os gestos necessários para o seu ofício, a alimentação regrada do jantar e a alimentação sem-juízo nem norma do almoço, os horários e a pontualidade com o seu rigor clássico, a conservadora e discreta forma de vestir e sorrir, enfim, nada mudava - desde que se levantava até se deitar - excepto uma coisa: entre o polegar e o indicador da mão direita segurava com precisão de relojoeiro o fio de um balão bem cheio, que não largava durante todo o dia. No trabalho, em casa, na rua, na mercearia onde pedia periodicamente Maçãs mais rosadas que as meninas ingénuas, no Café, andando mais rápido ou mais lento, mantendo-se na vertical ou sentando-se, o senhor Calvino não largava o balão, sempre com a preocupação que ele não rebentasse.
Por vezes, atava-o ao pulso com um fio.
No seu ofício, quando as duas mãos livres eram indispensáveis, fazia um nó com o fio à volta da chave de uma gaveta, e o balão ali ficava, ao seu lado, calado, sempre presente, parecendo por vezes fazer o papel, na sua mesa, das fotografias de família que alguns colegas colocavam em cima das secretárias. Quando a natureza interior o solicitava, entrava na casa de banho com o balão e, depois, já lá dentro, com toda a delicadeza - como quem pousa uma jarra frágil num tampo instável - enrolava o fio no manípulo da porta e quase se via tentado a dizer, carinhosamente, como alguns dizem aos seus animais: «espera um pouco».
Nos transportes públicos, em horas de grande concentração de pessoas, o senhor Calvino levantava o balão acima da cabeça e com esforço, mantinha, em todo o percurso, o braço bem levantado para que um movimento mais descuidado não o rebentasse. Em casa, antes de dormir, colocava o balão junto à mesa de cabeceira e só depois, sim, adormecia.
Dar uma atenção invulgar (mesmo que apenas durante alguns dias) a um objecto como este era, para Calvino, um exercício fundamental que lhe permitia treinar o olhar sobre as coisas do mundo. No fundo, o balão era um sistema simples de apontar para o Nada. Este sistema (mecânico, apesar de não ter motor), a que vulgarmente se chama balão, no fundo rodeava com uma camada fina de látex uma pequeníssima parte da totalidade do ar do mundo. Sem essa camada colorida, aquele ar, agora como que sublinhado e salientando-se do resto da atmosfera, passaria completamente despercebido. Para Calvino, escolher a cor do balão era atribuir uma cor ao insignificante. Como se decidisse: hoje o insignificante vai de azul.
E a quase insuperável fragilidade do balão, obrigava ainda a um conjunto de gestos protectores que lembravam a Calvino a pequena distância que existe entre a enorme e forte vida que ele agora possuía e a enorme e forte morte que andava sempre, como um insecto desconhecido, mas ruidoso, a cada momento a circular em seu redor.