Grandes!

OPINIÃO25.11.202205:30

Como A BOLA levou as vidas de Ronaldo e Gomes a cruzarem-se, um dia, no Funchal

LI, algures, e subscrevo, a ideia, evidentemente genérica, de que para os portugueses nunca algum português é suficientemente bom. Nem Cristiano Ronaldo, nem José Mourinho, nem Jorge Mendes, só para citar três nomes de figuras que, por alguma razão, não encontram no país o reconhecimento que, geralmente, recebem no estrangeiro. Ninguém.
Sou do tempo em que se discutia, por exemplo, o talento de um excecional 10 como Rui Costa e se afirmava que se ele fosse realmente fantástico não teria ficado tantos anos na Fiorentina. Como é possível desdenhar-se tanto de tanto talento e de tanta capacidade e de tanta grandeza de exemplares vidas profissionais como as que construíram Cristiano Ronaldo ou José Mourinho, Rui Costa e outros, com as suas personalidades óbvia e naturalmente imperfeitas?!
Para nós, portugueses, a maioria dos portugueses que triunfa lá fora (e também cá dentro, mas sobretudo lá fora) é muitas vezes olhada com muitos defeitos. Esses portugueses ou são vaidosos ou são arrogantes, ou são assim ou assado, ou não se lhes reconhece o talento que julgam ter, ou, se o têm, nunca é suficiente para pensarem que são os melhores. Regra geral, apontamos como defeito o ego das nossas principais estrelas, normalmente tido como grande, por serem tão grandes, e, pelos vistos, por serem vistos como tão incapazes de meter o ego no espaço de uma mala. Como se fosse fácil gerir o impacto de ter, como no caso de Cristiano, mais de 500 milhões de seguidores só numa rede social - Instagram - e como se fosse fácil vestir, como diz o próprio Cristiano, a pele de «fruto apetitoso».
Não ser capaz, por exemplo, de defender cegamente a iniciativa de Cristiano Ronaldo dar a grande entrevista que deu ao jornalista e vedeta da televisão britânica, Piers Morgan, de quem se tornou próximo, talvez mesmo amigo, pelo menos desde que lhe concedeu, em 2019, entrevista de semelhante intimidade, abertura e frontalidade, não me impede de reconhecer, e concordar, aliás, com o próprio Piers Morgan, quando diz que a entrevista dada agora por Cristiano é de uma «honestidade brutal». Concorde-se ou não com o que diz ou como diz, aceite-se melhor ou pior o momento que escolheu, creio que devemos realmente reconhecer que a verdade de Cristiano Ronaldo dificilmente poderia ter sido transmitida com maior frontalidade.
Terá Cristiano calculado todas as consequências? Sou levado a crer que sim, como o provam todos os factos que lhe sucederam, desde a bem preparada conferência de imprensa que deu já no Catar, com a camisola da Seleção, até ao anúncio do acordo realmente de cavalheiros selado com o Manchester United, para confirmar um divórcio que, mais do que anunciado, se tornou inevitável.
Podemos, agora, continuar a desdenhar do nosso melhor jogador do mundo, continuar a criticar-lhe o que diz, como diz, quando diz, mas o que não poderemos nunca ignorar, por muito que isso nos custe, sobretudo a nalguns de nós, portugueses, é lugar de Cristiano Ronaldo na história do futebol, mas também na história deste pequeno País, por vezes de gente bem pequenina.
Costuma Ronaldo afirmar, e sublinhar, que não é ele que persegue os recordes, são os recordes que o perseguem a ele. Tendo a concordar com esta inexplicável expressão. Ainda ontem, na exasperante estreia de Portugal no Mundial-2022, o lugar de trono entre os deuses do futebol lá estava, à espera dele, para se sentar como único jogador da história a marcar golos em cinco fases finais do Campeonato do Mundo. Nem Messi, Maradona ou Pelé. Notável e dificilmente igualável.
Podem alguns estar, realmente, cansados de Cristiano Ronaldo. Admito. Mas ele não nos dá descanso. É uma chatice!

QUANDO, em setembro de 2008, A BOLA foi responsável pela organização da entrega da primeira Bota de Ouro a Cristiano Ronaldo, recordo que nem se hesitou no incontornável: convidar, quem mais?, Eusébio da Silva Ferreira e Fernando Mendes Soares Gomes para entregarem nas mãos de Cristiano o troféu que distingue o melhor goleador dos campeonatos de futebol na Europa. Cristiano conquistou essa primeira Bota de Ouro (31 golos na Premier League) ainda como jogador do Manchester United, que viria a trocar pelo Real Madrid sensivelmente um ano depois (e pelo qual chegaria a mais três Botas de Ouro). E nesse ano de 2008 CR7 tinha sido campeão inglês, campeão europeu e fizera parte da Seleção que chegara aos quartos de final do Europeu.

MAS, para esta história, a indispensável recordação não é essa. A indispensável recordação tem a ver com a generosidade, disponibilidade, simpatia, elegância e exemplar carinho com que Fernando Gomes aceitou, de imediato, o convite que A BOLA lhe fez para viajar até ao Funchal e marcar presença na noite de Ronaldo.
Antes de CR7, apenas Eusébio e Gomes tinham trazido Botas de Ouro para Portugal, e Gomes trouxe mesmo o prémio por duas vezes, e por isso está na história como o nosso Bibota. De Eusébio (que saudades!...) está tudo mais do que dito. Mas a Gomes todas as homenagens são ainda poucas para destacar a história, brilhante e ímpar, que escreveu como um dos maiores avançados de sempre do nosso futebol, e a personalidade tão simples, amável, elevada e elegante que sempre revelou, pelo menos em todos os momentos que com ele me relacionei, ele como jogador, e, mais tarde, como figura de primeira grandeza do desporto nacional, eu, desde que o conheci, nos primeiros anos da década de 80, sempre como jornalista.
Jamais esquecerei, por exemplo, aquela reportagem em Cascais (acompanhava-me o meu ainda o camarada Rui Raimundo de máquina fotográfica em punho), especialmente preparada para criarmos com Fernando Gomes a imagem de capa do jornal para o qual então trabalhávamos, com uma fotografia com ele a beijar a primeira das duas Botas de Ouro, ganha em 1983. Gomes (lembro-me como se fosse hoje) estava num intervalo de gravações para o programa do Herman José (o fabuloso e memorável Tal Canal), no qual viria e ser entrevistado pelo Estebes, inesquecível e muitas vezes recuperada personagem de Herman José, o maior génio do humor e da televisão portuguesa.
Jamais esquecerei, sublinho, a simpatia e dedicação de Gomes. E a admiração reforcei, quando, quase 25 anos depois, voltei a ter o privilégio de sentir a delicadeza e elegância da personalidade de Gomes, naquela ida ao Funchal, quando A BOLA fez naturalmente questão de lhe pedir que entregasse, com Eusébio, a primeira Bota de Ouro a Cristiano, na terra natal de Cristiano, local obviamente escolhido pelo próprio para uma cerimónia carregada de significado para todos os fãs portugueses, e, muito em particular, para as nobres e apaixonadas gentes da Madeira.
Como membro da família da ESM (European Sports Media, que reúne as mais prestigiadas publicações desportivas europeias), responsável pela Bota de Ouro no velho continente, A BOLA planeou e executou aquela primeira cerimónia com Ronaldo, com a preciosa ajuda de instituições madeirenses, e Gomes (e também, evidentemente, Eusébio) deu, ainda, maior grandeza ao evento.
Ele lembrar-se-á bem, estou certo, do jantar após a cerimónia e daquele delicioso convívio de cavalheiros que A BOLA reuniu num dos mais bonitos restaurantes do Funchal, e eu lembro-me muito bem da luminosa presença de Gomes.

POUCOS anos mais tarde, em outubro de 2011, A BOLA voltou a ter boa parte da responsabilidade na cerimónia de entrega da segunda Bota de Ouro a Cristiano, agora em Madrid, centro do novo mundo de CR7, já então jogador do Real. A BOLA voltou a convidar Eusébio e Gomes para essa festa, que reuniria na capital espanhola outras figuras de dimensão como Di Stefano, Zidane ou Paulo Futre.
Eusébio foi. Nem aquela festa seria a mesma festa sem a grandeza de Eusébio. Mas faltou a humanidade e simplicidade de Gomes, que tinha regressado, entretanto, ao seu FC Porto como diretor, e foi o seu FC Porto que o impediu de aceitar o convite de A BOLA para viajar até Madrid e voltar a estar, como tanto merecia e se justificava, na qualidade de um dos protagonistas da cerimónia que distinguiria Cristiano com a segunda das quatro Botas de Ouro que, entretanto, conseguiu.
Não sei se o senhor Fernando Mendes Soares Gomes, ídolo do FC Porto, nosso Bibota e um dos maiores avançados que tive o privilégio de ver em campo, vai ler esta recordação. Mas sei que merece todas estas palavras e muito mais. E merece tanto vencer o maior desafio que a vida lhe está a colocar, agora que acaba de celebrar 66 anos, como A BOLA, de forma igualmente simples mas histórica, assinalou, na edição da última terça-feira, num significativo trabalho assinado pelo jornalista António Simões.
Gomes é grande. Muito grande. E nem todos os que se julgam grandes serão alguma vez tão grandes como ele!