Governo iluminado e o Regresso

OPINIÃO26.07.202003:15

Sátira política. Histórias de o ‘Senhor Kraus’ neste intervalo. O Chefe e os seus Auxiliares. Depois de um período de ausência, o Chefe regressou. E os Auxiliares estão quase radiantes. 
 

Sobre um governo iluminado

1 - Os ministros eram tantos que nas reuniões gerais era necessário contratar um daqueles funcionários dos cinemas cuja função é levar o espectador até ao seu lugar marcado.
Como o conselho de ministros, por tradição secular - tal como os filmes - decorria às escuras, o funcionário com a sua lanterna era (literalmente) o único que via algo à sua frente.
Cada ministro chegava e o funcionário conduzia-o, sempre guiado pela lanterninha, através de várias filas, até ao seu lugar no conselho de ministros.
- Nesta fila, a terceira cadeira a partir de lá.
Pedindo desculpa aos outros ministros, o recém-chegado lá ia, mais pisadela menos pisadela, para o seu lugar.
Mal o homem da lanterna saía, a sala ficava absolutamente sem luz; e por isso transformara-se num acto normal o Chefe dizer, de imediato, acalmando com a voz os seus companheiros:
- Estou aqui, estou aqui!
Depois de, pelo som, localizarem o Chefe, a reunião começava.

Ainda o Regresso

2 - O Chefe de regresso.000000- Há, por exemplo - disse um Auxiliar - a questão das obras e a questão das demolições...
O Chefe fez uma pausa (que saudades tinham já destas pausas) e começou:
- Reflecti sobre este tema... e concluí o seguinte: o fundamental é não fazer as duas coisas no mesmo tempo e no mesmo espaço...
- Como, chefe?
- Parece-me - disse o Chefe - que o melhor é deitarmos abaixo num espaço e no outro levantarmos. Não confundir as coisas. Aliás, gostava de dizer que o primeiro novo conceito que desenvolverei neste meu regresso é o conceito de …
- De?
- De? ... (O Chefe levantava muito as sobrancelhas como quem acaba de formular uma adivinha). É o conceito de: deitarmos para cima! Deitarmos para cima, não é uma formulação exemplar? Deitamos abaixo prédios velhos e deitamos acima prédios novos; e isto porque, de certa maneira, as coisas depois acabam sempre por cair.
- É quase um conceito filosófico...
- Sim, sem dúvida - disse o Chefe que neste recomeço de funções parecia um jovem entusiasmado - é um conceito que introduz a percepção do tempo. Tudo muda, meus caros, e tudo o que é posto de pé, mais tarde cai. Portanto, a partir de hoje vamos ser a primeira cidade que constrói com a lucidez de perceber que tudo é temporário - temporarium tudio - é um latim mais ou menos… portanto: deitaremos prédios abaixo e deitaremos prédios acima.
- Bravo, Chefe. Com tanta filosofia até podemos poupar no cimento.
- Não tinha pensado nisso...

Avançar, recuar

3 - As coisas podiam estar a avançar na minha ausência, mas a questão é: o que é avançar? E porquê este preconceito em relação ao recuar, ao atrasar, ao tropeçar...
- Exactamente, chefe.
Da cidade pouco se sabia, mas aquilo, sim, era um facto: o coração dos Auxiliares agora batia melhor! Com mais inteligência, dir-se-ia, não fosse o coração um órgão especializado em outros assuntos.
Mas havia trabalho a fazer.
- Chefe, temos aqui uma série de relatórios parados e uma série de coisas reais que estão a andar! O Chefe tem de pôr mão nisto!
- Nunca vi isto assim - acrescentou o outro Auxiliar.
- Quando eu saí as coisas caminhavam noutro sentido..., disse o chefe.
- Não apenas noutro sentido ... - acrescentou o primeiro Auxiliar.
- ... Caminhavam no sentido precisamente oposto!
- Exactamente - concordou o segundo Auxiliar -, as coisas reais estavam paradas e os relatórios é que estavam a andar.
- Pois bem - disse o Chefe - não há tempo a perder. Agora temos de avançar a grande velocidade em direcção ao passado.
- É isso, Chefe.