Futebol, reino da opacidade

OPINIÃO23.09.202107:00

Dirigentes sabem que podem contornar as regras porque não há contas certas que batam um grande golo

Ofutebol profissional tem uma particularidade quase única entre o universo das atividades económicas: rege-se por regras empresariais mas molda-se por um tribalismo permanente. É racional no topo e irracional na base. Só graças à efervescência deste desporto que a todos nos apaixona se perdoam erros de gestão grosseiros às respetivas administrações. Desde que a bola continue a entrar, pouco importa o passivo, os ativos, as VMOC ou os empréstimos obrigacionistas. Os adeptos nunca vão para a rua festejar menos €50 milhões de prejuízo que o rival ou as contas constantemente no verde.
Se as SAD tivessem um escrutínio dos seus acionistas semelhante à das empresas cotadas em bolsa provavelmente já teriam falido. Não há muito tempo, as três principais sociedades desportivas  estavam em falência técnica à luz do Código das Sociedades Comerciais. Só que o acionista de um Benfica, FC Porto ou Sporting não é o investidor típico que pretenda ganhar dinheiro. É um benfiquista, um portista e um sportinguista. Temos, pois, este paradoxo constante: há regras escritas mas prevalecem às vezes as regras não escritas.
O recente episódio da troca milionária de jovens jogadores entre FC Porto e V. Guimarães é apenas mais um exemplo da natureza do fenómeno em Portugal: é tudo legal, é tudo legítimo e só diz respeito aos acionistas das respetivas sociedades, que por sua vez são, em maioria, os clubes cujas Direções são eleitas pelos sócios. Mas não deixa de representar mais um episódio da gigantesca opacidade que reina no mundo dos negócios no futebol. Os dirigentes/administradores, que tão diligentemente procuram os microfones quando se querem queixar da enésima arbitragem, são os mesmos que fogem às perguntas. À prestação pública de contas. Ao escrutínio moral.
Tratando-se de uma atividade privada, pouco poderão os governos intervir. O mercado de transferências é, teoricamente, controlado quer pelos reguladores nacionais quer pela FIFA numa abrangência mais lata, mas a história de casos recentes (e outros menos recentes) tem mostrado que é muito fácil contornar os regulamentos. Dinheiro fictício, bolhas enormes (quando rebentarão?), desvios obscenos, personalidades que emergem do nada, facilitadores de serviço e muita imaginação. Uma máquina muito bem oleada, poderosa e descentralizada que provavelmente ninguém poderá um dia desligá-la. Porque o valor de um golo, de uma vitória ou de uma derrota do rival é muito mais saboroso que uma folha de Excel. Enquanto o povo sofre ou celebra, o dinheiro (real ou não) flui por canais subterrâneos. É a festa da bola.
 

RUI COSTA assumiu oficial e formalmente a candidatura à presidência do Benfica depois de, forçado ou não, ter cedido (ou  influenciado a decisão) em várias frentes, rompendo com as práticas do antecessor, Luís Filipe Vieira. Parece incrível, mas em 2021 é notícia o facto de poder haver debates televisivos entre candidatos à liderança do clube com maior representação social no País. O Benfica, outrora exemplo de democracia, foi-se enclausurando nos últimos 15 anos sob o propósito de se proteger do exterior mas foi essa a técnica, confortável de ano para ano, que permitiu a Vieira gerir o clube com um sentimento de posse sem permitir o contraditório. Já não é notícia, mas foi-o no devido tempo: quando, sob a liderança do ex-presidente, a Comunicação Social viu ser vedada a entrada nas Assembleias Gerais, o palco onde os associados podem exercer o escrutínio sobre quem os lidera. Todas estas barreiras, omissões e opacidades mantiveram-se estáveis até ao momento em que a bola passou a bater mais vezes na trave. Aí deu-se a entropia. Rui Costa tenta manter uma certa equidistância entre o passado e a oposição e só uma hecatombe impedirá o antigo número 10 de vencer as eleições. O tempo tem sido seu amigo e continuará a sê-lo até 9 de outubro. É no dia seguinte que começará o seu verdadeiro desafio: fazer diferente e ganhar. E não será por acaso que tem usado, aqui e ali, o termo transparência. Que não seja uma palavra vã num futebol cheio de sombras.