Francisco J. Marques e a clubite doentia

OPINIÃO26.07.202206:30

Somos também o único país em que se dá palco a diretores de comunicação de clubes de futebol como se estes fossem pessoas que vale a pena ouvir

MAIS uma voltinha, mais uma viagem. Decido consultar os desportivos para a ronda diária de atualizações e vejo que o Futebol Clube do Porto venceu o Mónaco no jogo oficial de apresentação aos adeptos. Já devia saber melhor, mas cometo o erro de ver o resumo. Quis o destino que o primeiro golo resultasse de mais um daqueles penalties cavados ostensivamente por Taremi, um ilusionista profissional que tem tanto de talentoso com a bola nos pés quanto de espertalhão. Que o clube de Taremi tenha um destes penalties assinalado a seu favor é hoje tão certo como a morte ou os impostos, mas é particularmente caricato que Taremi se preste a esta figura num jogo amigável.  Alguns adeptos - toldados pelo excesso de portismo - dirão que isto é um reflexo da sua competitividade. O talento mais conhecido deste jogador mostra-se mesmo num jogo a feijões. Bravo! Já os especialistas em penalties dirão que tudo isto faz parte e revela grande argúcia do jogador, apesar do amplo corpo de evidência no futebol europeu nos permitir classificar isto como um embaraço para a modalidade. No fundo, pode dizer-se que o principal objetivo deste jogo de apresentação aos adeptos foi atingido: estão de facto apresentados.
 
Como se tal não bastasse, horas depois do tributo às artes circenses, eis que surge o diretor de comunicação do FCP indignado porque milhares de pessoas, munidas apenas da sua visão e do mais elementar bom senso, constataram o óbvio: ainda estamos em Julho e já está de volta o triste espectáculo da época anterior. Diz o diretor de comunicação do FCP que só a “clubite doentia” pode justificar a reação dos adeptos que criticam Taremi. Confesso que esperava mais lucidez. Afinal de contas, se há alguém que, ano após ano (desde que o FCP decidiu torná-lo uma figura pública) se notabilizou por fomentar precisamente a clubite doentia, é o próprio Francisco J. Marques. 
 

«O talento mais conhecido de Taremi mostra-se mesmo num jogo a feijões. Bravo! Já os especialistas em penáltis dirão que tudo isto faz parte e revela grande argúcia do jogador»


Clubite doentia não é criticar um jogador porque mergulha dentro da área a cada oportunidade que tem. Clubite doentia é patrocinar perseguições a jogadores, dirigentes e adeptos de um clube adversário. Clubite doentia é transformar a devassa da vida privada num conteúdo de entretenimento, a pretexto da defesa do seu clube. Clubite doentia é atacar jornalistas quando estes não apresentam os factos mais convenientes. Clubite doentia é patrocinar o comportamento persecutório de mílicias populares nas redes sociais ou fora delas, movidas pelo ódio e não pela rivalidade clubística. Clubite doentia é branquear a intimidação de árbitros. Clubite doentia é o estabelecimento de narrativas em que a violência verbal e física são a consequência mais do que natural e prevísivel. Clubite doentia é a instrumentalização de uma agremiação desportiva para criar narrativas sobre centralismos. Clubite doentia é aludir ao 25 de Abril travestido de liberdade de expressão. Clubite doentia é, também, que muitos adeptos do Futebol Clube do Porto vejam nesta cronologia do percurso de Francisco J. Marques uma medida da sua competência.

É por isso que, quando Francisco J. Marques avisa que as críticas ao penalty cavado por Taremi sinalizam o início de um ataque ao Futebol Clube do Porto, o que ele está realmente a fazer é anunciar que vem aí mais uma época deste fogo cruzado em que pessoas como Francisco J. Marques ocupam o espaço mediático para usar e abusar dos truques já conhecidos, intoxicando a opinião pública e aproveitando a atração da comunicação social pelo lado mais putrefacto do futebol.

Portugal é uma nação de extraordinárias singularidades, a maioria merecedora de grandes elogios. Mas há também coisas em que somos invulgarmente medíocres. Senão veja-se. Por um lado, somos o país com mais futebolistas talentosos por quilómetro quadrado que este planeta já viu. Por outro, somos também o único país em que se dá palco a diretores de comunicação de clubes de futebol como se estes fossem pessoas que vale a pena ouvir. A verdade é que isso resulta da ação dos próprios clubes, que há anos catapultam os seus funcionários para posições de grande visibilidade, quando estes - pela própria natureza da função - fariam bem  em remeter-se aos bastidores ou, como quem diz, à sua insignificância. Não seria nenhuma singularidade do nosso futebol. Seria apenas o abraçar da mais salutar normalidade. Alguém sabe o nome do diretor de comunicação do Real Madrid? Ou do Barcelona? Como se chama o diretor de comunicação do Manchester United e quantas vezes o vimos aparecer em público para atacar jogadores, árbitros, dirigentes ou adeptos? Nenhuma, mas apetece perguntar qual seria a reação do público e das entidades que tutelam a modalidade em Inglaterra se isso acontecesse.

No fundo, temos estes fenómenos que só se dão em Portugal porque as nossas medíocres singularidades o permitem. Pessoas como esta existem no futebol porque os intérpretes do velho mundo ainda não caducaram de vez, e infelizmente o dia não parece estar para breve. Enquanto profissional de comunicação, Francisco J. Marques deveria passar menos tempo a ocupar-se dos afazeres da clubite doentia de que se diz vítima, e talvez questionar-se sobre o porquê de uma equipa campeã nacional, recheada de talento, ser recordada mais vezes pela prática enganosa do que por qualquer outro feito ao longo da última época desportiva. Acontece que Francisco J. Marques não é um profissional de comunicação. É um profissional da intoxicação que não tem olhado a meios e muito menos cuidado de alguma espécie de decência no futebol português para ajudar a conservar o poder do seu clube dentro ou fora de campo. E serve esta causa degradante com notável esmero e dedicação. Não desejo nada a Francisco J. Marques a não ser que a evolução do futebol português acabe por torná-lo irrelevante. Para isso terá de ser derrotado no único sítio que me importa: dentro de campo, de forma tão inapelável que nem a clubite doentia o salvará.