Finalmente!...

OPINIÃO03.09.202206:30

Foi preciso que uma maldosa pergunta feita a Rúben Amorim fosse ridiculamente convertida numa infração disciplinar para cair oCarmo e a Trindade

A Comunicação Social acordou para o problema da justiça desportiva, mas foi preciso sentir na pele que o mal está, em primeiro lugar, nos regulamentos da Federação Portuguesa de Futebol e da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, seja do ponto de vista substantivo, dos procedimentos e, designadamente, nos órgãos que os elaboram e os aplicam.

Na verdade, foi preciso que uma maldosa pergunta feita a Rúben Amorim fosse ridiculamente convertida numa infração disciplinar para logo cair o Carmo e a Trindade porque está em causa a liberdade do jornalista perguntar o que entender. Ninguém tem dúvidas deste direito do jornalista, como direito tem o entrevistado de responder ou não, e de escolher o momento para a resposta.

Rúben Amorim esteve bem, mais uma vez, quando disse que não era aquele o momento para falar de um assunto que nada tinha a ver com o jogo acabado de jogar, e que o faria - como veio a fazer - na conferência de imprensa. A jornalista esteve mal, porque dentro daquilo que foi o jogo tinha o legítimo direito de perguntar se o Slimani não teria feito jeito naquele jogo ou outra coisa do género, sendo pouco importante a fofoquice das declarações daquele, mais próprias de um determinado tipo de jornais e de pretensos jornalistas, do que de uma televisão virada para a informação.

Rúben Amorim esclareceu, na conferência de imprensa, que o que tinha a dizer a Slimani lhe o havia dito na cara e, portanto, não voltaria a esse assunto. Não merece, na verdade, perder-se mais tempo com uma pessoa que, face à incapacidade para ser cobarde, se limitou a ser cobardolas. Destes tipos estamos fartos, como estamos fartos de homens que se comportam como garotos!...

Mas voltando ao tema, o Regulamento de Competições, a alínea a) do n.º 1 do artigo 91.º define a flash interview (entrevista rápida para o povo) pela sua duração - minuto e meio para cada interveniente - e o seu conteúdo - versando exclusivamente sobre as ocorrências do jogo.

Um jornalista de boa fé não pode ignorar que as declarações de Slimani, proferidas antes do jogo, nada têm a ver com as ocorrências do jogo. Contudo, ao fazê-lo apenas não terá cumprido as regras que lhe são impostas pela sua entidade patronal, face ao eventual acordo que sobre isso tenha sido celebrado entre a sua entidade patronal e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

Contudo, relações laborais não é o tema em discussão. O que se discute é se isto tem alguma relevância disciplinar, isto é, se um jornalista da Sport TV responde disciplinarmente perante o Conselho de Disciplina se violar a regra do Regulamento de Competições pelo facto de fazer perguntas fora das ocorrências do jogo.
 

Amorim esteve bem quando disse que não era aquele o momento para falar de um assunto que nada tinha a ver com o jogo acabado de jogar


A resposta intuitiva parece-nos ser que isso não é possível. Contudo, quando se lê a alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento Disciplinar da LPFP sobre o que é um agente desportivo - «os dirigentes dos clubes e demais funcionários, trabalhadores e colaboradores dos clubes, os jogadores, treinadores, auxiliares-técnicos, elementos da equipa de arbitragem, observadores dos árbitros, delegados da Liga Portugal, agentes das forças de segurança pública, coordenador de segurança, assistentes de recinto desportivo, médicos, massagistas, maqueiros dos serviços de emergência e assistência médicas, bombeiros, representante da proteção civil, apanha-bolas, repórteres e fotógrafos de campo e, em geral, todos os sujeitos que desempenhem funções ou exerçam cargos no âmbito das competições organizadas pela Liga Portugal e nessa qualidade estejam acreditados, bem como os membros dos órgãos sociais, dos órgãos técnicos permanentes e das comissões eventuais da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e da Liga Portugal - ficamos com a ideia de que um jornalista é um agente desportivo, dada a referência a repórteres e fotógrafos de campo.

Não nos parece lícito incluir unilateralmente os jornalistas, de campo ou fora do campo, nos agentes desportivos, ainda que seja para os proteger, isto é, enquanto vítimas e não enquanto infratores. Mas, cheio de boas intenções está o inferno cheio, e, por isso, o que se nos afigura é que se trata de mais uma tentativa do sistema de controlar tudo e todos, e de condicionar a liberdade de expressão e opinião.

Não deixa, porém, de ser lamentável que jornalistas e comentadores, que falam frequentemente dos regulamentos, como se os dominassem, mas que ignoram completamente, de acordo com o hábito de falar daquilo que não sabem, não tenham reparado nestes regulamentos, e manifestado tempestivamente a sua indignação.

Não me tenho cansado de tentar debater a questão da justiça desportiva desde que o presidente da Liga veio apontar o dedo ao Tribunal Arbitral de Desporto, sem ter o cuidado mínimo de fundamentar e explicar por que é que este não devia existir, antecipando-se, curiosamente, a uma série de casos que manifestamente estão fora da esfera do TAD.

E acho que tenho demonstrado que a responsabilidade deste estado está nos órgãos que elaboram os regulamentos e nos órgãos federativos que os aplicam.

Ainda há uma semana chamava a atenção da PGR e, no fundo, de todos, incluindo jornalistas e comentadores, que na Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol se juntam dirigentes associativos e da Liga, patrões e sindicalistas, médicos, enfermeiros e massagistas, árbitros da APAF, jogadores sindicalizados e treinadores sindicalistas, isto é, uma mistura variada de que se não podem esperar grandes resultados no que respeita à regulamentação desportiva. São interesses contraditórios que se conciliam em nome do sistema que controla o poder.

Alguém acha que daí pode nascer algo que se conforme com o direito e com os superiores interesses do futebol. Evidentemente que não porque cada corporação defende os seus interesses dentro do futebol, mas não do futebol.

Eu acho que tudo isto devia ser motivo de investigação. E tal como entendo que o jornalista pode e deve fazer as perguntas que entender, quando for caso disso, também me permito sugerir que bem maior proveito se poderia tirar de um debate a sério sobre estas matérias, do que procurar temas e assuntos que não têm outro objetivo que não seja a especulação ou a conversa de pátio.

Sugiro mesmo uma pergunta que ninguém fez ao presidente da Liga sobre o fundamento da sua aversão ao Tribunal do Desporto, designadamente, qual a razão por que é que não deve existir ou por que é que não quer que o TAD exista? Talvez a resposta, ou a falta desta, seja a razão por que é que a justiça desportiva caminha desta maneira.

Senhores jornalistas peço-lhes, humildemente, que provoquem o debate destas questões de uma forma séria e construtiva, e não deixem que o jornalismo resvale para os fait divers e para as tricas. Assumam que jornalismo não se pode confundir com audiências ou vendas, mas com informação séria, verdadeira e com interesse. Só assim se defende a liberdade de expressão e opinião, que vidas custou à sociedade portuguesa no tempo da outra senhora!