Fim de carreira

OPINIÃO11.06.201900:59

O fim de carreira, de qualquer carreira, não é um momento fácil de digerir. Quem se entrega a uma atividade, de corpo e alma, durante anos a fio, tem sempre alguma dificuldade em cortar o cordão umbilical. A saída - seja porque motivo for - nunca é emocionalmente pacífica. É natural que assim seja. Afinal de contas, não estamos apenas a falar de alguém que deixa de desempenhar uma função para mudar de ares. Estamos a falar de uma mudança radical no estilo de vida. De uma mudança profunda em hábitos e rotinas enraizados há muito. Hábitos e rotinas que criaram e alimentaram profundas ligações sociais, pessoais e familiares.
Muda tudo.
E mesmo que essa alteração seja ponderada, previsível e expectável, a verdade é que a passagem para a outra margem pode ser um pesadelo com consequências complicadas. No futebol, ex-jogadores e ex-árbitros (mais do que quaisquer outros agentes desportivos) sabem bem o que isso custa. Por força da especificidade das suas funções, o final de carreira é, para eles, prematuro. Pelo menos, face à legislação laboral vigente, o que deixa muita dessa rapaziada em apuros. É que, ao contrário do que muita gente pode pensar, apenas uma ínfima parte de atletas e juízes competem no escalão principal do futebol português.
No caso dos árbitros - classe que me é mais próxima - as contas são muito fáceis de fazer: existem 20 na primeira categoria, para um total estimado de 4000. Ou seja, a elite representa... 0,5% dos juízes no ativo. Se para esses a saída pode ser, de algum modo, preparada para atenuar a pancada seca no desemprego, para todos os outros é, quase sempre, o caos. Muitos dos árbitros dos quadros nacionais não profissionais (e até alguns dos distritais) abdicam parcial ou totalmente das suas carreiras profissionais, por não conseguirem - ou não lhes permitirem - compatibilizar ambas as atividades. Percebe-se porquê. Não é qualquer patrão que está disposto a aturar (e a criar regimes de exceção) a um funcionário para que este possa ter fins de semana (e não só) ocupados com jogos. Não esqueçamos que isso lhes aumenta a fadiga, afeta o rendimento e cria anticorpos junto dos colegas. E depois, claro, ainda há a questão da (má) imagem, o trabalho por turnos afetado, as viagens, cursos, provas e afins. Se é para cumprir com zelo e qualidade, é necessário compromisso. É necessário priorizar. E quem escolhe a outra atividade, jamais chegará longe no futebol. Um dilema.
Quanto à arbitragem, exige (e bem) devoção máxima durante uma vida, mas no final da carreira parece apenas dizer um tímido «obrigado, adeus e passe bem». Esta não é uma realidade atual nem exclusivamente nossa. Acontece desde sempre e em todo o lado. É necessário repensá-la. É que nem todos os que fecham o seu ciclo são absorvidos pelas estruturas. E se isso é compreensível, já a incapacidade de todos refletirem sobre uma transição almofadada e gradual para a vida ativa... não é.
Já se lançaram ideias nesse sentido. A criação de uma espécie de Fundo de Pensões, por exemplo ou a tentativa de aproveitar, para a arbitragem, o maior número possível de elementos. Mas essa verdade ainda mora longe. E os árbitros só têm noção do tamanho do fosso quando mergulham nele. É aí e só aí que percebem que uma vida inteira de dedicação, sacrifício familiar e entrega a uma causa onde são tratados como bandidos, tem como retorno uma despedida rápida e morna. Às vezes, uma não despedida. Em qualquer outra atividade, quem cai no desemprego tem direitos. A bola tem regras distintas e essas penalizam, quase sempre, os jogadores e os donos do apito.
Em bom rigor, não é culpa de ninguém. Na verdade, é culpa de toda a gente.