Faça-se a sua vontade
Há um ano, disputadas 30 jornadas, Benfica e FC Porto dividiam o primeiro lugar (ambos com 75 pontos), consagrando a espantosa recuperação de sete pontos protagonizada por Bruno Lage, desde a 16.ª jornada, na altura ainda interino, porque a confirmação como sucessor de Rui Vitória, tal como ora sucede, demorou o tempo que só o presidente do clube poderá explicar. Na jornada seguinte (31.ª), o dragão empatou em Vila do Conde, mas a águia ganhou em Braga e essa vantagem de dois pontos não mais a deixou escapar até à confirmação da Reconquista, abençoada panaceia que muito suavizou a dor provocada pelo fracasso do penta, em 2018.
Lage sentiu-se embaraçado com tantos agradecimentos por uma conquista que a família benfiquista considerara perdida. Justificou-os, porém, ao adaptar a coreografia da companhia ao talento do miúdo João Félix. Com essa mudança, enriquecida pela superior classe de Jonas, a máquina encarnada adquiriu mais rotação, revitalizou Pizzi e Seferovic, principalmente estes, e a nova onda positiva depressa aglutinou o resto do grupo.
Este ano, completadas 30 jornadas, o FC Porto é o líder com mais seis pontos do que o Benfica, margem sem mácula, mas intrigante se recuarmos ao virar de página no Campeonato e verificarmos que, desta vez, os papéis estavam invertidos: era Lage quem somava mais sete pontos do que Conceição. As voltas que o futebol dá e o fascínio que esconde. Os atributos que endeusaram Lage, e em meia dúzia de meses lhe foram retirados, não valem mais nem menos do que as capacidades que se atribuíram a Conceição, que depois lhe foram recusadas e que dentro de quatro jornadas, no máximo, lhe serão devolvidas.
Tudo isto para pretender dizer o quê? Não vale a pena inventar desculpas sem nexo, com o propósito único de engordar rivalidades tribalistas: Bruno Lage foi campeão com inteiro merecimento. Sérgio Conceição vai ser campeão com inteiro merecimento.
A diferença entre os dois emblemas, nos últimos três anos, reside, quanto a mim, na força de acreditar, independentemente da estabilidade de cada qual. Sérgio Conceição chegou em 2017, foi campeão no ano seguinte, perdeu em 2019 e está à beira de voltar a comemorar na corrente época. Foi um percurso com etapas complicadas, consequência talvez da sua personalidade forte, que apenas obedece ao presidente e que da parte deste sempre recebeu total cobertura. Em rigor, pode não ter sido bem assim, mas a imagem que passou para o exterior foi essa, a de uma cumplicidade absoluta entre ambos, apesar de algumas posições que Conceição tomou e que não devem ter sido acolhidas com sorrisos, quer no plantel, quer nos corredores da Administração… A verdade é que, nos bons e maus momentos, de Pinto da Costa nunca se ouviu uma frase, nunca se viu um gesto, nunca se captou um desabafo que pusesse em causa a autoridade do seu treinador.
Situação díspar é a que se vive no Benfica. Parece-me evidente que Rui Vitória não fez quanto podia e devia para alcançar o penta, mas também ficam poucas dúvidas sobre uma paz periclitante e não combatida com a clareza que se impunha. Testemunhámos o mistério da luz, que iluminou o presidente e lhe sugeriu outra solução, recorrendo a Bruno Lage, mais por impulso do que por convicção, como se deduz, mas foi feliz na medida em que o sucesso da Reconquista é a prova incontestável.
Vieira gosta de surpreender e assim como promoveu Lage, assim o deixou cair, sem se entender a razão de fundo de tal procedimento. Não me refiro ao despedimento, mas à intenção que orientou o arrastamento de um quadro instável que precisava ser analisado e atacado logo que começou a interferir negativamente no rendimento da equipa de futebol. O treinador não querer admitir que está errado é compreensível até determinado ponto, mas não o questionar pela ausência de resultados e não o responsabilizar pelo risco de falência de uma temporada desportiva foi uma falha comprometedora que competia ao presidente da Administração assumir, com a celeridade que as circunstâncias exigiam. Tudo leva a crer que não o fez, porque se o tivesse feito, e se Lage teimasse na sua visão delirante do problema, então a saída, além de inevitável, passaria a ser uma urgência. Tudo isto é estranho e a trapalhada do Funchal constitui o exemplo mais recente. Em março, escrevi que se compreendia mal a fragilidade da posição a que Bruno Lage estava a ser exposto, sem uma palavra de apoio por parte de quem deveria protegê-lo. Na volta do correio apenas recebeu silêncio. O resto é do conhecimento público, uma campanha agressiva, massacrante e com um objetivo calculado. Campanha essa indecorosamente consentida pelo mesmo silêncio que foi empurrando Lage para o olho da rua.
Se tudo isto deriva de uma precipitação ou de uma premeditação, o futuro dará a resposta. De toda a maneira, Vieira tem passado, tem trabalho, tem obra e tem crédito bastante para escolher o caminho por onde quer seguir e responsabilizar-se pela decisão que tomar. Faça-se a sua vontade.