Eu acredito na lontra de Sóchi

OPINIÃO30.06.201800:42

Tenho ouvido paciente e respeitosamente os nossos doutorados em futebol português explicarem como o Uruguai vai ser um insolucionável problema para Portugal. Depois de nos terem garantido que a Espanha era impossível de travar, que Marrocos seria a grande surpresa do Mundial e que o Irão do ayatollah Queiroz era estaticamente inviolável, chegou o momento da evocação uruguaia, uma equipa que tem por principal característica o que se poderá chamar uma ironia grupal: uma defesa indestrutível e um ataque que destrói tudo o que estiver na sua frente.


A poucas horas do jogo, era mais do que evidente o meu desânimo. Pelos vistos, as lusíadas possibilidades seriam nulas. Não só porque Portugal deixara-se cair no caldeirão errado do sorteio, mas, mais importante do que isso, porque Deus já terá dito a Fernando Santos: «Desculpa lá, mas já fiz por ti e pelo Éder tudo o que podia no Europeu de França, e os outros também são filhos de Deus...»


Bom, fui-me conformando com a ideia de que Fernando Santos vai acabar por aproveitar a boleia e vem, mesmo, com o neto para casa.
Porém, e de repente, uma luzinha ao fundo do túnel. Seria possível? Uma luzinha ainda de esperança, nesta noite de trevas e neste mar sem fim?
Eram os olhinhos redondos da lontra Harry a olharem para mim, piedosos e húmidos como o pelo. E eu vi uma senhora obviamente muito russa pegar numa bola azul e noutra vermelha, declarar aquela como uruguaia e esta como Portugalia e atirá-las para o charco.


Harry nem hesitou. Mergulhou de focinho, tocou a bola azul, mas foi a vermelha que escolheu para salvar do naufrágio, trazendo-a, feliz da vida, para bom porto. E a avantajada senhora russa, que como todas as outras teria sido bela e curvilínea na juventude, declarou: PORTUGALIA!


Ou seja, a lontra de Sóchi, que é uma lontra internacionalmente conceituada nas técnicas de adivinhação, escolheu e previu que Portugal vai passar aos quartos de final. Não nos disse se vamos ser ajudados pelo VAR, se Ronaldo marca, se vamos a penastes. Disse o que disse e sem hesitações.


Eu, cá por mim, acredito que a lontra tenha escolhido bem e que Portugal vai eliminar o Uruguai, até porque a vida das lontras não está fácil e, na Rússia, depois de todo o trabalho a que Putin se deu para mostrar um país feliz e grandioso, o mínimo que poderia acontecer a uma lontra que erra em direto e ao vivo para o mundo, seria o degredo no frio siberiano.


Depois daquele tempo de desalento e de preparação mental para a derrota, confesso que renasci. Um amigo meu viu-me surpreendentemente satisfeito, depois de me ter criticado na minha anterior premonição de desglória, e quis saber o que tinha levado a esta transformação psicológica. E eu falei-lhe da Harry, a lontra de Sóchi, e disse-lhe que acreditava mais no bicho anfíbio, que o Vasco Santana imortalizou num dos seus inesquecíveis filmes, do que na sapiência científica de muitos dos nossos futanalistas.


O meu amigo arrefeceu um bocadinho o meu entusiasmo e lembrou-me que a lontra de Sóchi podia ter sido amigo da lontra Amália e da lontra Eusébio, que fizeram furor no aquário do nosso oriente lisboeta, e que estivesse, apenas, a querer ser simpática. Disse-me também que não se pode confiar muito na sensatez das lontras, animal escorregadio e pouco cerebral, e que se ainda fosse um elefante, um rinoceronte ou uma girafa, seria, certamente, mais fiável. Talvez tenha razão, não sei, talvez a lontra de Sóchi seja da Rússia antiga e escolha sempre o vermelho, mas, mesmo assim, sinto-me tentado a pensar que as lontras sabem mais de bola do que a maioria dos nossos doutores a quem a bola tanto atrapalha.