Estranhos para nós próprios

OPINIÃO26.08.202306:30

Alguém duvida que Roger Schmidt crítico em público do seu guarda-redes não foi o mesmo a que nos habituou durante toda a época passada?

NO livro Strangers to Ourselves (Estranhos para nós próprios), de Timothy Wilson, publicado em 2002 pela Harvard Business Press, deparamos com algo que ainda hoje surpreenderá alguns leitores. Este autor defende que somos bastante ignorantes acerca de nós próprios.  Mais em particular, sabemos muito pouco acerca da nossa mente e, principalmente, exercemos pouco controlo sobre ela. Sendo verdade que através da nossa atenção seletiva e, portanto, conscientemente nos concentramos e focamos no que pretendemos aprender, no que respeita ao nosso processo de tomada de decisão a nossa mente inconsciente é muito mais rápida e eficiente. Mesmo em determinados momentos, avançando com súbitas tomadas de posição que nos acontecem sem qualquer hipótese de controlo consciente.

Tivemos aliás, recentemente, um esclarecedor exemplo disso mesmo através do treinador do futebol profissional do Benfica, Roger Schmidt. Absolutamente à revelia do comportamento da época passada, sob a pressão dos maus resultados, Roger Schmidt criticou em público o seu guarda-redes! Inimaginável face ao que lhe conhecíamos anteriormente, mas muito humano!

Aliás está hoje bem claro que aprendemos sem esforço e, (vejam só!) de modo bem mais rico quando o fazemos dando espaço e libertando sentimentos e emoções. Segundo Timothy Wilson, os sentimentos e as paixões são fundamentais no processo de tomada decisão; a nossa mente inconsciente tem uma função importante na recolha de informação, interpretação e avaliação do que acontece ao nosso redor e é fundamental para a nossa sobrevivência, influenciando permanentemente a nossa forma de pensar, sentir, reagir, estar motivados, etc. Através de um constante trabalho de observação e análise do mundo que nos rodeia, a nossa mente inconsciente avisa-nos de eventuais perigos, apontando objetivos e iniciando ações de forma eficiente e sofisticada. Ou, como foi o caso agora de Roger Schmidt expõe-nos a comportamentos que nos surpreendem.

Mas não só! Por razões de eficiência empurramos para o nosso inconsciente julgamentos, emoções, sentimentos, motivações, com o objetivo de nos permitir poder fazer várias coisas ao mesmo tempo. Somos capazes de estar atentos ao que estamos a fazer, enquanto automática e inconscientemente vamos fazendo outras coisas. Conseguimos estar a ler um livro e, ao mesmo tempo, ser capazes de meditar e vaguear mentalmente por outros assuntos e temas. Possuímos essa espantosa capacidade de, mesmo quando o nosso cérebro está ocupado conscientemente, conseguirmos inconscientemente ter acesso a mais informação paralela, tratá-la, retirar conclusões dessa análise e tomar decisões ou reagir de forma bastante eficaz.

Algumas das nossas decisões do dia a dia não têm assim controlo consciente como é o exemplo da opinião que formamos acerca de alguém através do conhecido fenómeno das primeiras impressões. Aliás do mesmo modo que tudo aquilo que na nossa infância e juventude ficou marcado na nossa memória, mais tarde, ou mais cedo, irá emergir inconscientemente através do modo como pensamos, procedemos ou nos emocionamos.

UM outro exemplo do nosso inconsciente tem a ver com o que designamos como sexto sentido, também conhecido como propriocepção. Funciona como um verdadeiro sensor que dá feed back constante através da pele, dos músculos, das articulações, assinalando-nos a posição relativa do nosso corpo no espaço que nos rodeia. Com base nos nossos sentidos, organizamos e interpretamos de forma continuada, automática e inconsciente a informação que recolhemos, tornando o nosso consciente totalmente dependente dessa informação inconsciente.

Os processos mentais referentes à perceção, linguagem, sistema motor, etc., operam assim fora da área consciente.  Imaginem se numa empresa ou numa equipa desportiva, apesar da capacidade de quem lidera, os dirigidos subitamente hora a hora, dia após dia deixassem de fazer o que lhes pertence. Se assim acontecesse, a empresa ou a equipa perderiam todas as hipóteses de ser viáveis, (quem joga são os jogadores, não os treinadores). Exemplos vários assim o comprovam. Nomeadamente, decidir instantaneamente a que informação dar atenção, (ameaça de perigo de acidente), ou, no momento preciso em que conhecemos alguém, assumir quase instantaneamente uma opinião acerca dessa pessoa.

OUTRA questão, muito importante acerca da mente inconsciente tem a ver com a respetiva flexibilidade e capacidade evolutiva (está em permanente evolução e adaptação às circunstâncias). Todos conseguimos analisar o meio ambiente, interpretá-lo e iniciar comportamentos através de respostas rápidas e inconscientes. O que representa uma vantagem de sobrevivência e nos permite ultrapassar os muitos obstáculos com que deparamos. Se tivéssemos de permanentemente decidir através do consciente como respirar, compreender a linguagem, andar, etc., perderíamos imenso tempo e seríamos muito pouco eficazes. Assim o nosso consciente delega verdadeiramente no inconsciente a gestão dessas áreas da nossa vida. Tal como o faz um CEO ou um treinador desportivo ao delegar nos seus colaboradores ou jogadores o dia a dia da empresa ou os diferentes momentos de um jogo.

Mas atenção, consciente e inconsciente são profundamente complementares compensando-se sempre que necessário. Por aquilo que sabemos até ao momento, o consciente é o presidente executivo de uma empresa em que o inconsciente se encontra representado por todos aqueles gabinetes de apoio, staff, assessores, etc. Quanto ao inconsciente, deteta rapidamente no meio ambiente o que fazer, (alerta-nos para os perigos) e comunica-nos de imediato a reação necessária e funciona claramente em piloto-automático. Uma vez que aprendemos por via cultural determinados estereótipos, tendemos para aplicar esse saber de forma inconsciente, não intencional, sem esforço, incontrolável. O consciente, mais lento no processo de tomada de decisão, faz análises mais profundas, deteta os erros produzidos pelo inconsciente e assinala-nos o que está bem e o que está mal. Antecipa, simula mentalmente, planeia. O planeamento a longo prazo, pertence ao consciente. Somos claramente intencionais quando fazemos intervir o consciente, mas este obriga-nos a um esforço muito maior e exige-nos muito mais tempo, concentração e atenção. Nenhum destes sistemas é melhor que o outro, ambos se complementam, dependendo tão só daquilo que lhes solicitarmos.

Por causa do inconsciente, formamos muitas vezes teorias acerca do que pensamos que somos que, lamentavelmente, não correspondem ao impacto que temos nos outros. A este nível debatemo-nos permanentemente entre o que pensamos que somos, o que somos efetivamente e, principalmente, qual o impacto que temos nos outros. Alguém duvida que Roger Schmidt crítico em público do seu guarda-redes não foi o mesmo a que nos habituou durante toda a época passada?

Em geral, tendemos para ter uma opinião favorável sobre nós e para evitar aprofundar saber quem somos. Mas, inquestionavelmente, aquilo que nos acontece em termos familiares, escolares, sociais e profissionais acaba por ter uma enorme influência nos nossos comportamentos. O que nos conduz no sentido da observação das atitudes e comportamentos de cada um de nós e a respetiva interpretação e treino comportamental, deverem decorrer conforme as circunstâncias. O contexto tem sempre extrema influência na forma como nos comportamos, (nesta área tudo é circunstancial, nada deve ser encarado de forma definitiva). Devemos aprender connosco próprios, observarmos o que fazemos e porque o fazemos, como forma de aprendizagem e compreensão do comportamento dos outros.

UMA questão muito importante acerca do ser humano, tem a ver com o facto de todos nós, ambicionarmos ter poder, gostarmos de atingir metas ambiciosas e aspirarmos a ser membros de um coletivo cujo sucesso nos permita extrapolar para nós próprios essa afirmação. Muitas vezes, observamos a realidade que nos rodeia com base em pressupostos errados, tendendo para interpretar o que nos rodeia do modo mais confortável para nós. O que nem sempre tem sido interpretado da melhor forma no que respeita aos estudos levados a cabo pela ciência cognitiva. Segundo Varela, Thomson e Bosch no livro, The embodied mind, Cognitive Science and Human Experience, Edição de Massachusetts Institute of Technology, 1991, a ciência cognitiva pouco tem acrescentado à complexidade contida no que significa ser hoje um ser humano.

Como questão central, a opinião destes autores que as novas ciências da mente necessitam alargar o seu horizonte para abrangerem, em simultâneo, a experiência humana vivida e as possibilidades de transformação inerentes a essa experiência humana; acresce que existe uma circularidade entre as ciências da mente (ciências cognitivas) e a experiência humana habitualmente não identificada. Mas que não restem muitas dúvidas acerca do facto incontornável que vivemos e experienciamos primeiro e só depois estamos em condições de poder cientificar os conhecimentos adquiridos.