Era uma vez um ‘hacker’ tipo Robin dos Bosques
Era uma vez um hacker, que, no já longínquo século XXI, arranjara albergue no então extinto Império Austro-Húngaro. Ao que consta, havia-se iniciado em pirataria por assédio informático a um banco de uma longínqua ilha fiscalmente paradisíaca, de onde terá desviado umas centenas de milhares de moedas. Depois, ter-se-ia especializado em roubar informação privada e fazer espionagem industrial. Rapidamente floresceu e se metamorfoseou num ambiente de globalização e de exuberância tecnológica. O hacker, parece que jovem, tinha cabecinha. Engenhosa e sorrateira. Inventiva e perversa. Usava-a, com o ardil e a aparência de inocência necessários para ludibriar com encanto, sempre exibindo um insondável kit de gadgets, incluindo o último grito da moda tecnológica de perfuração digital.
Aconteceu que este nosso herói resolveu passar pela Ibéria e, entre outras vítimas, sacou toda a correspondência emailizada de uma centenária instituição, por sinal, desportiva. Parece que, para tanto, terá contribuído o fascínio do que no desporto-rei naquela altura - o futebol - era quase uma instituição, conhecida como o «benefício do infractor».
Numa noite de breu, o saque concretizou-se. Tudo foi levado, não pelo vento que até soprava levemente, mas pelo nosso generoso hacker. No infindável granel que extorquiu, havia de tudo desde conversas mais sérias a tantas outras de chacha, da treta ou de ocasião, desde graçolas de duvidoso gosto a metáforas atolambadas ou néscias, desde contratos desportivos ou comerciais a cunhas com maior ou menor empenho. Coisas que qualquer alminha no seio do futebol de então se não escrevia, pelo menos dizia ou fazia.
Isto passou-se ainda no tempo em que estas práticas eram consideradas criminosas. O certo é que o objecto do crime se espalhou urbi et orbe. Pago ou não pago, com recibo de quitação ou sem IVA, trazido pela rena da Finlândia ou pelo burro da Tasmânia, apanhado num qualquer ermo ou baldio em forma de pen ou de pena, aportou (quer dizer, chegou ao porto), por intrépidas e egrégias personagens. Logo se apressaram a tornar público o embrulho, e no meio de tanto sortido de milhões de mails, anunciavam uns poucos seleccionados, em fatias semanais e estilo Sherlock Holmes, sempre de dedo em riste, embora com ares de virgem e convencidos da acção salvífica que lhes estava destinada.
O objecto do cibercrime, qual troféu de caça à moda do passado século XXI, iniciaria, deste modo, o seu percurso entre o extorsionista militante e o seu usuário ilegítimo. Neste tipo de actividades não constava que houvesse beneméritos ou filantropos. Como ninguém terá pago o produto do crime, houve até quem tivesse admitido (malevolamente) que tenha caído na chaminé natalícia daqueles sortudos. Chegou-se a dizer que o pirata era tipo Robin dos Bosques: roubava aos poderosos para dar aos desesperados e famintos. Voltando ao benefício do infractor - diziam cronistas da época - pegou-se no alvo do crime (correspondência privada) e, por milagre, transformou-se a acção proibida em coisa boa, reparadora, digna, excelsa mesmo. Houve até quem dissesse - quase em jeito de blasfémia religiosa, na altura - que o justiceiro ao ter nas mãos tanta papelada fez lembrar o milagre do vinho das bodas de Caná, pois o roubo uma vez manipulado pelo justiceiro (ou milagreiro) virou credível, senão mesmo virtuoso.
Muita discussão terá havido à volta do assunto. E perguntava-se: o que diria um milagreiro qualquer se alguém violasse a sua correspondência particular e íntima e a desse por acto de generosidade (humanitária) a alguém que a tornaria pública em todo o sítio, por exemplo, divulgando conversas sobre impostos, refeições, relações e pomares. Será que esse milagreiro acharia eticamente irrepreensível a acção do mensageiro, como nesta história chegou a parecer?
Moral da história: se, em matemática, negativo por negativo dá positivo, na vida, crime com crime não dá prémio nem legitimidade (além da ilicitude). É que, salvo circunstâncias absolutamente excepcionais numa sociedade civilizada e num Estado de Direito, os fins (mesmo que desejáveis ou aceitáveis) nunca justificam meios (criminosos). E a ideia plena da ética não se confunde com a da moralidade, que é como quem diz, o dever dos outros (ética da terceira pessoa) só faz sentido com o primado do dever de cada um (ética da primeira pessoa).
Jogar num estádio vazio
NUMA - certamente por mera coincidência ou fruto do acaso - torrente de punições, processos, intenções e denúncias anónimas a la carte que se vêm abatendo sobre o Sport Lisboa e Benfica, eis que o Estádio da Luz (e outros) foi sujeito a uma punição de um jogo efectuado à porta fechada, expressão que quer dizer sem assistência.
Devo dizer que aplaudo o propósito de apertar a malha contra práticas negativas e ofensivas que se estão a generalizar nos estádios portugueses. Também sei reconhecer que o Conselho de Disciplina terá agido em conformidade com normas aprovadas pelos … clubes.
O que já não compreendo é a lógica que lhes subjaz. Ouvi uma entrevista televisiva do actual presidente daquele Conselho e percebi que a bitola fundamental para a acção disciplinar tem a ver sobretudo com a reincidência e não tanto com a magnitude ou natureza das acções a punir. Quer dizer, no caso do Benfica tratou-se de punir «à terceira» ocasião de pirotecnia, mesmo que sem consequências gravosas para os jogos a decorrer. Entendi, assim, que a chuva de artefactos que caiu em Alvalade sobre a área do Sporting, logo nos primeiros momentos do jogo contra o Benfica e que gerou a interrupção da partida por alguns minutos, não é punida com um jogo sem assistência porque ainda não é a terceira vez! Também não sei se serão precisas mais duas tentativas de algum espectador entrar no relvado para agredir um jogador da equipa adversária (caso no último Porto-Benfica para molestar Pizzi), para a suspensão ter cabimento!
Para além da questão discutível de saber a quem compete a responsabilidade de acautelar determinados actos (se à equipa visitada ou visitante), estou em crer que, para atacar a verdadeira raiz do problema, seja com claques legalizadas ou não, este tipo de suspensões nada resolve. Aliás, prejudicam esta actividade, afastam mais pessoas dos estádios, são financeiramente inadequadas para os clubes castigados, não evitam situações para as quais os clubes não têm antídotos ou efectiva possibilidade de os prevenir, ou, pelo menos, evitar. Como sócio de um clube, prefiro que, a ter de haver punição desportiva pesada, pois que seja a de interdição, tendo o clube de jogar noutro estádio, mas com os seus adeptos e simpatizantes. Pergunto até por que razão eu tenho de ser molestado com este tipo de punições, quando, como tantos sócios, comprei a possibilidade de ver todos os jogos. Quem me indemniza? E terão as regras em vigor pensado suficientemente nas eventuais repercussões sobre as entidades patrocinadoras aos diferentes níveis que, mesmo mantendo-se a transmissão televisiva, vêem limitado o retorno do valor que investiram.
Não diminuindo a responsabilidade e a função que os clubes devem ter diante das suas claques apoiantes, este tipo de problemas são, sobretudo, casos de polícia que deveriam ser sanados à nascença, por exemplo, identificando os costumeiros prevaricadores, impedindo-os de ir aos estádios, como foi resolvido nos estádios ingleses o problema bem grave que havia. Por que é que há-de ser sempre o justo a pagar pelo pecador?