E depois?

OPINIÃO31.03.202004:00

1 - Não há ‘bola’, o que é bem diferente de não haver A BOLA. Esta continua a acompanhar-me, diariamente, desde Fevereiro de 1995 e, antes, durante muitos anos, três ou quatro vezes por semana. Nesta rarefacção de inexistência de ‘bola’, bem compreendo a direcção e os jornalistas e os aplaudo pelo modo como têm sabido enfrentar esta inédita situação. Eu próprio, neste cantinho semanal que me é proporcionado, passei a deparar com a síndrome da angústia do tema ou temas a tratar. Todavia, também vejo estes tempos de bola adormecida - nem sempre bela adormecida - como uma oportunidade para reflectir sobre assuntos que, antes, eram sugados pela maior predominância actualista dos jogos e dos golos. Estamos, pois, numa espécie de defeso impositivo, diferente do defeso de Verão, onde sempre há (havia) o incomparável Tour de França que, este ano, até teria sido acompanhado pelos Jogos Olímpicos de Tóquio.

Pressinto que vamos assistir, no próximo futuro, a uma revolução no futebol mundial e, por tabela, no futebol nacional, em razão de um vírus pandémico e de uma economia global ferida em alguns dos seus fundamentos e alicerces. E se, no momento em que escrevo, há uma indisfarçável dificuldade em ver com clareza o fim do roteiro sanitário de combate ao vírus, o que se passa na economia e no plano social é de todo incalculável e jamais previsto nesta magnitude e nesta escala planetária.

Sendo assim, também todos os parâmetros nos quais se tem baseado a actividade futebolística estão a sofrer um abalo tsunâmico, de que ainda estamos longe de alcançar todas as consequências. A única certeza que podemos prever é que nada ficará como dantes. O que vai, quando vai e como vai acontecer não se pode garantir.

Em boa verdade, esta chamada indústria também se pôs muito a jeito, ignorando sempre as crises cíclicas para as quais se achava imunizada, não cuidando de encurtar diferenças profundas entre clubes num mesmo país e entre clubes em competições internacionais, promovendo um ambiente de um futebol sinónimo de riqueza, de ricos e de ricaços, ignorando que a larga maioria dos seus players estiveram sempre na margem da subsistência, consentindo que os custos de intermediação fossem uma forma de saque e de domínio consentido sobre a rendibilidade futura dos clubes, deixando-se enlevar por uma espiral de custos salariais suportados por uma bolha de publicidade enganosa, promovendo o excesso do número de jogos e competições inventadas, e fechando os olhos a formas ínvias de negócios designadamente em modo off shore.

2 - O futebol oscila entre tudo inflacionado e tudo mendigado. Entre a exportação selectiva do produto e a sua importação aos magotes. Entre protegidos e protectores, e esquecidos e tutelados. Onde aparentemente tudo é igual, mas sempre se cuida de haver algo que é mais igual que o resto. Onde o fascínio da árvore das patacas frondosa e imponente anula ou dificulta a visão da floresta de todas as árvores grandes e pequenas.

Na grande maioria dos clubes, o equilíbrio só se vinha alcançando por via de receitas extraordinárias (designadamente transferências), pelo inchamento das receitas resultantes de direitos televisivos mal distribuídos e de outros proveitos de natureza comercial ou publicitária, pelo endividamento que mais não é que a fuga para a frente que outros terão de pagar, ou, em certos casos, pela alteração da estrutura societária, não raro especulativa. Embalada pela receita não recorrente, pelo comprometimento do futuro em razão do presente, pouco se cuidou da parcimónia e sustentabilidade da despesa. Assim se inverteu a lógica racional de um (qualquer)negócio: em vez de uma melhor e mais racional despesa presente e futura para não se estar tão dependente de receita contingente, preferiu-se partir desta para continuar a alimentar custos que não deixaram de subir. Por outras palavras: em vez de gastar em função do rigor da certeza, optou-se por partir da incerteza para ‘falsificar’ a despesa.

Muitas perguntas se põem neste tempo tão imprevisível. Como irão evoluir as receitas televisivas, por sua vez, financiadas por publicidade e marketing, por sua vez, sujeitas drasticamente a uma redução da produção de bens e serviços? O que vai acontecer ao ‘mercado do futebol’ com valores de transferências e montantes das cláusulas de rescisão, que agora se vê tão claramente como desajustados e provindos de um mundo à parte? Este ponto é de grande importância para os clubes portugueses que têm feito da alienação de ‘activos’ a principal fonte de um instável equilíbrio, sabendo-se agora que, além do efeito temporário da recessão económica, estarão feridas estruturalmente as possibilidades de negócios como o de João Félix ou até Bruno Fernandes, recordes dos seus clubes que jamais serão batidos. Como vai ser reduzida a lógica de intermediação que atingiu percentagens elevadas e montantes injustificados? Como vai a ainda rica UEFA conciliar a gulosa Champions de uns muito poucos com um novo paradigma mais racional e justo? Como vão as federações e ligas compatibilizar todos estes riscos em novos formatos que assegurem uma mais justa competitividade entre equipas? Como vão os clubes encontrar receitas alternativas para compensar as que vão desaparecer ou ser reduzidas (sem esquecer a previsível diminuição, ainda que temporária, de receitas de bilhética e de lugares de época nos estádios)? O que vai acontecer a clubes assediados por capitalistas endinheirados de ocasião, que prometem o paraíso? E há muitas outras perguntas, ainda sem resposta…

3 - Volto à possibilidade ou não de se poderem finalizar as competições nacionais. É quase um dado adquirido que não haverá recomeço desta época. Mas, tenho lido que, pelo menos, se coloca a hipótese de a concluir com os estádios vazios. Já nesta coluna falei como isso é a negação do desporto. E não deixa de ser irónico que ‘jogo à porta fechada’, que era até agora considerado uma punição disciplinar, se pudesse transformar para 80 jogos (os que falta fazer na Liga) numa solução. A ironia de um paradoxo…

No imediato prazo, há um ponto que se coloca. É o relativo aos salários de todos os que trabalham nas sociedades desportivas (e não apenas dos jogadores e técnicos). Com duas abordagens evidentemente distintas. Começando pela dos clubes cuja média salarial é baixa (a maioria), e que poderão entrar rapidamente em incumprimento, importa salvaguardar na aprovada legislação sobre lay-off a sua elegibilidade nos termos gerais, ou seja a de uma redução de 1/3 do salário durante a forçada inactividade e de financiamento de 70% dos outros 2/3 pela Segurança Social (até ao limite de 3 vezes o salário mínimo). Quanto aos (poucos) clubes com salários elevados ou muito elevados, agora sem jogos, sem actividade, com quebra de receitas, parece óbvio que se deve  aplicar a mesma legislação (à data em que escrevo, ainda não são conhecidos os decretos), obviamente com um encargo bastante mais elevado das SAD, pois que o limite atrás citado pouco compensa a média salarial dos jogadores. Assim haveria a redução temporária salarial de 1/3, nos meses de obrigatória inactividade. Não vale a pena inventar ou tentar encontrar outros caminhos quando a lei geral aí está. Nunca se poderá justificar que a inactividade implique a redução de 1/3 nos trabalhadores em geral e que, mais uma vez, os futebolistas dela estivessem isentos. Além de que há futebolistas que ganham mais num mês do que muita gente em grande parte da sua carreira.