Dos medos
Lá, no Leste de Angola, eu tinha, de pequenino, sagrado ritual de prazer: mal o meu pai chegava a casa com A BOLA (que em Lisboa saíra dois dias antes) dava-ma e, por ser tão grande, usava truque que magicara: estendia-a no chão da sala, para melhor a ler, espraiado, de bruços - e numa tarde assim saltou-me a notícia aos olhos: Milorad Pavic, treinador que acabara de fazer do Benfica campeão, pedira demissão: «Já passei por revolução terrível na Jugoslávia, não quero passar por outra aqui.»
Muitos anos depois, já na Travessa da Queimada, descobri que Pavic andara até por transe mais sinistro do que contara em A BOLA de 22 de abril de 1974: «Pertenço àquela desgraçada geração da II Guerra Mundial e passei aqueles que teriam sido os melhores anos da minha vida não com o equipamento do meu clube, mas com uniforme de prisioneiro. Nesses quatro anos de prisioneiro na Alemanha algum futebol pude ainda jogar e até aprendi a falar alemão e francês.» (Essa foi a última edição de A BOLA que passou pela Censura - não podendo, pois, revelar-se o que só depois se soube: que Pavic fora atirado para o campo de concentração ao apanharem-no como partisan a lutar contra nazis.)
Pavic também levou o Benfica à final da Taça (que não foi no Jamor, foi em Alvalade) - perdeu-a para o Boavista de Pedroto (com golos de Mané e João Alves) e não houve quem o demovesse do medo imaginado, com o PREC atiçado, sublinhou-o: «É, é pelo medo da guerra civil que me vou embora, não é pelo resto.» (O «resto» eram os ordenados em atraso, o ter-se azucrinado com a contestação «revolucionária» de treinadores portugueses contra estrangeiros.)
PS: Isso aconteceu há 45 anos e só o trouxe à berlinda para mostrar que se o medo depende da imaginação e a lisura do caráter - não se pode deixar que, agora, se use o medo para se jogar um futebol por baixo do pano, em ardis e por entrelinhas ou se use o medo como vírus a esconder-se em falsídias, sonsices, subterfúgios, artimanhas, manigâncias...