Do roubar ao... rouVAR!

OPINIÃO12.12.202002:00

Há mais de dois anos que venho dizendo que o meu tempo acabou, isto é, o meu tempo de dirigente do futebol, que se iniciou, exatamente, há quarenta anos, feitos em Agosto último. Desse tempo, sobra saudade, mas também experiência e, sobretudo, memória. Esta semana, é a memória duma arbitragem que, há muitos anos, e salvo raras excepções, vem sendo avaliada por incompetência, falta de isenção e frequentemente suspeita de corrupção.

Ainda era um menino de doze anos - não ia ao futebol só e ainda só tinha visto dois jogos ao vivo - quando surgiu um primeiro (22/03/59) episódio: «Inocêncio Calabote, um árbitro internacional do futebol português e o primeiro árbitro de futebol a ser irradiado por acusações de corrupção. Este mesmo árbitro foi envolvido em acusações de corrupção relacionadas com o Sport Lisboa e Benfica.» Não, não é como o brandy Constantino, cuja fama vem de longe, mas apenas o que consta da Wikipédia! Como muitos sabem, e outros se lembram, foi o tempo em que a administração da arbitragem cabia à Comissão Central de Árbitros e não existia qualquer associação de classe, como agora, para branquear árbitros e insultar a inteligência das pessoas com a velha história do errare humanum est, que pode desculpar uma falta ou um engano, mas não a falta de isenção. Dizem que aquele campeonato ficou conhecido pelo campeonato do Calabote, tal como a Taça da Liga ainda hoje é conhecida pela Taça Lucílio Baptista!

Em Janeiro de 1981, com cinco meses apenas de dirigente, e com funções no âmbito do Secretariado-Geral, como vice-presidente, tive de me sentar no chamado banco, como delegado ao jogo. O chamado maçarico na função, para utilizar a linguagem militar relativamente aos recém-chegados ao serviço. Humildemente, no final de jogo, pedi desculpa ao árbitro por qualquer falta que, devido à inexperiência, tivesse cometido. Recebi de resposta o seguinte: «Houve ali um lance que ainda estive para marcar penálti, mas seria muito forçado»! Era inexperiente, mas não era ingénuo. Por isso, calei-me, saí da cabine e pensei para comigo: Afinal é mesmo verdade!
Não eram passados quatro meses, nova polémica só para confirmar que era mesmo verdade: na tarde de 02/05/1981, um árbitro chamado Inácio de Almeida anulou ao Sporting, no Estádio da Luz, um golo limpo marcado por Jordão. «Como vi que o Manuel Fernandes pretendia simular uma falta na área, deduzi que a bola iria chegar ao Bento e este, sem perder tempo, a ia pontapear para a frente.» Quando se justificou, dizia que o seu pecado fatal foi ter virado as costas à bola e, portanto não viu Jordão, em posição legal, ganhar o esférico ao guarda-redes do Benfica. E o fiscal de linha ficou estático, por coincidência um antigo atleta do Benfica. Mas reza a história que, nessa noite, nos estúdios da RTP, em directo, Inácio de Almeida não reconheceu, perante as imagens televisivas, o erro no lance entre Jordão e Bento. A verdade é que Inácio de Almeida nada vira; apenas presumira, por já estar de costas, a existência de uma falta, provavelmente de Jordão. Só assim compreendia o facto de a bola não ter chegado a Bento. Mas dizia Inácio de Almeida. «No dia seguinte, em Sines, onde trabalhava na Companhia Nacional de Petroquímica, um indivíduo que era adepto do Sporting ofereceu-me uma cassete de vídeo com o jogo. Só então fiquei esclarecido de que cometera, de facto, um erro.»


O árbitro António Costa também marcou uma falta quando estava de costas para um lance, no Estádio da Luz, e, naturalmente, a favor do Benfica, mas nunca esclareceu coisa nenhuma, o que nos leva a pensar que não é só um problema de dualidade de critérios, mas também de visão: os árbitros vêem atrás, quando o Benfica está pela frente!


João Rocha exigiu a irradiação do árbitro, defendendo: «A sua actuação não poderia ficar impune, pois além de incompetente, mostrou ser desonesto, cópia fiel de um tal Inocêncio Calabote. Por isso, não basta mandar o árbitro de Setúbal para a segunda ou terceira divisão. É necessário tomar medidas que sirvam de exemplo a quantos não têm a honestidade suficiente para dirigir um jogo de futebol. Inácio de Almeida tem antecedentes e tem uma alergia especial ao Sporting.» E aquele lance não foi o único. Foram, de facto, casos e casos. Um penálti muito duvidoso contra o Sporting, que, depois de falhado por Nené, foi repetido, um golo anulado ao Sporting, considerado pelo árbitro resultado de «uma entrada de pé em riste». E ainda um penálti indiscutível contra o Benfica que ficou por marcar! Paralelamente à suspensão imediata (que agora se chama jarra), foi aberto um inquérito por parte da Comissão de Arbitragem do qual  resultou uma nota de culpa à qual o árbitro de Setúbal demorou dois meses a responder. Finalmente, o processo foi concluído e Inácio de Almeida punido com 60 dias de suspensão. O Benfica-Sporting ficaria mesmo como o seu derradeiro jogo.


Eu próprio, perante as explicações do árbitro, que utilizou, em excesso, o advérbio quando, escrevi um artigo no jornal em que, dirigindo-me a Inácio de Almeida, lhe dizia que não interessava saber quando, mas sim o QUANTO? Ninguém disse nada! A APAF não dominava a arbitragem, nem contava para o totobola. Era uma associação de classe, mas já então sem classe!


Estes foram factos que recordei esta semana. Factos e não ficção, nem mitos ou lendas como pretendem alguns, julgando que já morreram todos os que viveram esses tempos. Calabote foi mesmo uma realidade e os factos falam por si e não há como branquear ou esquecer. Não é um mito como muitos tentam, a todo o custo, fazer crer. E foi um primeiro caso de vários outros escândalos da arbitragem que se sucederam nas décadas de oitenta e noventa, uns maiores e outros menores, porque abafados,  como o caso de Inácio de Almeida, que acabaria irradiado por não ter validado um golo legal ao Sporting num dérbi com o Benfica (que não podia perder, sob pena de ser apanhado na classificação pelo FC Porto); o do envelope de Francisco Silva, acusado de ter sido subornado num jogo entre o Penafiel e o Belenenses; os quinhentinhos de José Guímaro, o único árbitro português condenado em tribunal por actos de corrupção; ou o de Carlos Calheiros e da sua suspeita viagem em família para o Brasil. E nesta semana, em que tanto se falou de arbitragem, e, sobretudo, dos novos árbitros - os vídeoárbitros - que continuam a ser os de campo, passados e actuais, com a sua inerente incompetência e dualidade de critérios, submetidos a interesses que não são os do futebol, importa mesmo esta viagem na história de quase setenta anos, recordando os mais célebres, por mim vividos de perto, excepto o do Calabote. Tinha apenas doze anos, mas o meu Pai explicou-me o que era corrupção!


Eu também quis recordar essas histórias, não porque esse tempo acabou, mas para tentar explicar que devia acabar, mas não vai acabar, enquanto os protagonistas da arbitragem forem, não os administradores do sector da arbitragem, mas aqueles que defendem os interesses corporativos dos árbitros.
Na próxima ou próximas semanas vou procurar fazer uma análise jurídica sobre a organização da arbitragem. Entretanto, para se rirem do ridículo a que chega a organização da arbitragem com a promiscuidade entre o Conselho de Arbitragem e a APAF - um verdadeiro cancro - deixo-vos apenas esta beleza do sistema: cabe ao Conselho de Arbitragem coordenar e administrar a actividade da arbitragem, estabelecer os parâmetros de formação dos árbitros e proceder à classificação técnica destes; a APAF é uma associação de classe que tem por objecto essencial a defesa dos interesses dos associados! Se não vos faz lembrar o Dupont & Dupont, pensem no que seriam os sindicalistas bancários a administrarem os bancos!