Do roto ao cego

OPINIÃO19.11.202003:00

Aprendi com Miguel Torga a ter admiração por gente pobre que nunca aparecia suja ou rota no meio da rua. (Nem falsa.) Gente que usava durante o dia, com decência, o único fato que tinha (ou podia  ter) e que, à noite, mal chegava a casa, o despia, o escovava, o pendurava - e se punha nua diante da sua consciência, tranquilo e feliz nela. Durante muito tempo foi assim a Seleção. Houve vezes, contudo, em que foi pior: se não aparecia suja ou rota no meio do campo, aparecia, fora dele, enfarpelada em fraque coçado que alugava, sorrateira, a adelo velho para se mostrar só menor do que as suas fantasias  - perdendo mais do que apenas a inconsciência da grandeza mentida (e consolada em vitórias morais ou em derrotas imorais). Se, a pouco e pouco, foi deixando de ser assim, com Fernando Santos deixou de ser definitivamente assim (e como se sabe).

Se com Miguel Torga eu aprendi o que aprendi, com Nélson Rodrigues aprendi uma outra verdade (poética e sagrada):
- No futebol, o pior cego é o que só vê a bola…
e ainda aprendi que, nesse tipo de cegos, há sempre os idiotas da objetividade  ou da subjetividade. Uns ou outros tenho visto, nos últimos dias, a falarem de Fernando Santos (e da Seleção) em críticas e remoques alvoroçados. Sem que eles percebam (ou finjam não perceber) que Portugal foi eliminado pela França porque depois de ter defendido o indefensável, Patrício não defendeu o defensável. Sem que eles percebam (ou finjam não perceber) que mesmo querendo «jogar bonitinho» (não o devendo) e  sofrendo «dois golos de pelada» (não o devendo) - só grande seleção (com  grande treinador) é que poderia, ainda assim, ganhar (em casa dela) a uma equipa que não é vice-campeã da Conchichina, é vice-campeã do Mundo. E sem que eles percebam (ou finjam não perceber) que, apesar de tudo, Portugal vai continuar a ganhar (e bem) por ter os jogadores que tem e o treinador que tem - a saber, na sua argúcia, o que é jogar bem (sem se preocupar com o bonito ou o bonitinho...)