Do espanto incrédulo

OPINIÃO07.09.201801:47

«Não há nem nunca haverá corrupção no Benfica», dizia o presidente da SAD arguida, numa entrevista à BTV. O Ministério Público não concorda com Luís Filipe Vieira e acusou a SAD do Benfica de corrupção ativa, recebimento indevido e falsidade informática. Já Paulo Gonçalves, braço direito do presidente da SAD arguida e do Benfica, só é acusado de 79 crimes. Segundo o Ministério Público, «as entregas aos arguidos José Silva e Júlio Loureiro eram do conhecimento do presidente da Sociedade Anónima Desportiva (SAD), que as autorizava ou delas tomava conhecimento por correio eletrónico, ou rubricando folha de autorização, sem nunca as impedir, pois tal era para benefício da arguida [Benfica SAD], assim querendo e aceitando todas as condutas». Digamos que seria, no mínimo, estranho que alguém tão próximo de Luís Filipe Vieira agisse de motu proprio e que atuasse por auto recreação, mas, claro, isso, como tudo o que respeita a este processo, será provado ou não. O princípio da presunção de inocência é sagrado. No entanto, e como em todos os processos, desportivos ou não, havendo acusação, não se pode ignorar nem desmerecer a matéria aduzida. Nesta fase, já tudo é claro, não há peças na comunicação social que possam ser manipuladas num sentido ou no outro, não podemos fingir que não há mais do que meros indícios.


Apetece lembrar aquele anúncio televisivo em que o  Benfica escarnecia de um programa no Porto Canal onde se apelava à investigação de os indícios de irregularidades que se iam acumulando contra o clube da Luz. «Inbestigue-se», dizia o ator. Foi o que o Ministério Público fez e era capaz de apostar que os mandantes da rábula televisiva já não devem estar com muita vontade de rir.

Também me veio à lembrança a forma como os responsáveis benfiquistas e os seus declarados e não declarados agentes berravam. Diziam eles que tudo não passava de uma cabala que assentava em denúncias anónimas sem nenhuma credibilidade. Afinal, há matéria suficiente para acusar uma sociedade de crimes gravíssimos.


Uma das acusações vai muito para além do campo desportivo e é de uma gravidade inusitada. Há  centenas e centenas de provas, diria impossíveis de refutar, de que agentes da SAD arguida se infiltraram no edifício judicial para ter informações fundamentais. Processos que diziam respeito ao Benfica, acerca de outros clubes e até, por exemplo, a processos particulares do presidente do Benfica. Isto configura um atentado direto a um órgão de soberania, um ataque direto e claro ao Estado de Direito. Segundo o Ministério Público, e repito as provas são às centenas, o desrespeito dos representantes da SAD arguida por um dos pilares da nossa comunidade era zero.


Mas há mais do que isto, algo a que um representante do Benfica num órgão de comunicação social apelidava com uma criatividade jurídica extraordinária, de «corrupção comum» - coisa comum o ataque ao Estado de Direito: Paulo Gonçalves e a Benfica SAD terão oferecido «pelo menos nas épocas desportivas 2016/2017 e 2017/2018 e até 3 de Março de 2018» convites e produtos de merchandising a Júlio Loureiro, «de forma a criar condições de permeabilidade por parte do observador de arbitragem» para obter «decisões favoráveis, conhecimento privilegiado de informações desportivas e de pessoas e contactos ligados à arbitragem», reza a acusação. Talvez o douto representante do Benfica pense que este tipo de corrupção que se consubstancia em, por exemplo, obter informação para coagir adversários e outros elementos do jogo seja outro tipo de corrupção, talvez incomum...


Aliás, e é bom que fique claro já que andam para aí umas vozes que tentam separar os assuntos atentado ao Estado de Direito/vantagens desportivas (sabendo que há situações em que os atropelos apenas visam vantagens pessoais). Toda a atividade, segundo o Ministério Público, chocantemente ilícita, diz respeito, direta ou indiretamente, à atividade desportiva. A SAD arguida tem como objeto de atividade o futebol, tudo o que faz tem por definição repercussões no futebol.


Há quem se tenha espantado com a reação da SAD arguida. De facto, o ataque brutal à PGR é raro. A mim não me surpreende, é simplesmente a prova cabal de que o Benfica se julga acima de qualquer poder. Também não é, como alguém defendeu, estratégia,  é simples  incredulidade. Foi como dizer «como é possível alguém se atrever a desafiar o nosso poder?»


De uma forma mais clara, os representantes do Benfica sempre pensaram que a lei era para os outros, que o seu estatuto de clube português com mais adeptos lhes permitia fazer tudo, que o controle, mais ou menos claro, mais ou menos explícito, que tem em muitas instâncias era total e que nada lhes podia acontecer. A noção de completa impunidade era e, aparentemente continua a ser, completa.  É por isso que têm tratado a Justiça, nomeadamente o Ministério Público, com desdém, com altivez, desprezando tudo e todos.


Todas as reações, inclusive as que se deram depois de sabida a acusação, mostram o sentimento de impunidade que se vivia para aquelas bandas. Exibe que a noção de controle dos mais variados setores sociais era um facto. Não é estratégia, não é revolta, é só espanto incrédulo.
Este adepto de futebol está tudo menos contente com este processo, como com todos os que o Benfica, direta ou indiretamente, está envolvido. Ninguém pode estar. É mais do que o Benfica e estes dirigentes a estarem em causa, é o futebol português, é o prestígio de um futebol que é campeão europeu, é a imagem internacional de um grande clube do nosso futebol - basta ver as reações por esse mundo fora -, é a dignidade de uma instituição.


Não é só por isso que é um período negro. É também haver uma acusação formal que nos cria a sensação de termos sido aldrabados. De que havia um clube que não queria jogar com as mesmas regras dos outros, que utilizava meios ínvios para saber informações que não devia nem podia ter. Que se havia descaramento para fazer o que o Ministério Público acusa, o que se terá passado em sedes de muito mais difícil escrutínio ?


Que querem agora que pensemos quando  olhamos para os camarotes do Benfica e vemos gente como Vieira, Moniz e Gonçalves? Gente que, claro está, é inocente até ao trânsito em julgado, mas que está acusada formalmente de crimes gravíssimos?


O que está em causa neste momento é muito simples: reconquistar a confiança de todos os que gostam de futebol. Voltarmos a olhar para o jogo e não termos dúvidas de que as normas são iguais para todos, que não há quem queira ganhar fora do campo, que não se hesite em recorrer a atos criminosos para obter vantagens. É um caminho longo, mas tem que ser percorrido. Condene-se quem se tem de condenar, absolva-se quem deve ser absolvido, mas faça-se Justiça. Sem isso continuaremos, se não a viver numa mentira, pelo menos a termos a sensação de que lá vivemos.