Decisões, lei e população

OPINIÃO09.08.202004:00

Histórias do senhor Kraus neste intervalo. O Chefe e os seus Auxiliares.

Decisões absolutamente legais

1Lá chegou o legislador aos saltos: encontrara uma formulação para um decreto que parecia atingir o objectivo: fazer uma lei que não prejudicasse ninguém.
- E qual é essa formulação, caro legislador?
- É simples. Ela aqui está.
E leu:
«Esta lei decide que esta lei não decide nada.»
- Mas isso é uma lei?
- Se esta frase - porque no fundo, excelência, as leis são frases - se esta frase for editada como decreto de lei passa a ser um decreto de lei.
- «Esta lei decide que esta lei não decide nada», murmurou o Chefe para si próprio - como quem repete um verso que o fascina.
- É uma lei absolutamente moderna, não lhe parece?
- Sim, parecendo uma lei conformista, é afinal uma lei drástica.
-Porque as pessoas... - ia a dizer o Chefe, mas calou-se.
- Sim, mais precisamente: o que todos querem é que nada mude, mas que a vida melhore.
- Ah, não vai ser fácil.
- Não. Mas se continuarmos nesta linha de leis, há uma série de variações que se podem desenvolver. Por exemplo:
«Esta lei decide que se pode fazer de uma maneira ou de qualquer outra.»
Que tal? Não é uma lei que também se enquadra no objectivo de fazer leis que não levantem qualquer protesto? «Esta lei decide que se pode fazer de uma maneira ou de qualquer outra.» É uma brilhante formulação, desculpe-me a imodéstia.
- Sim, não é má. Mas eu sempre gostei de fazer leis concretas, objectivas, que as pessoas percebam.
- Oh, Chefe, não seja teimoso.

Tudo pela população

2«Esta lei decide que se pode fazer de uma maneira ou de qualquer outra.» O Chefe não estava convencido. Gostava do som da lei, do seu ritmo, da forma como começava e acabava, mas o conteúdo da lei, esse, não o convencia por completo.
Havia como que algo que faltava. Isso mesmo: faltava ali qualquer coisa. Mas o quê?
O Chefe repetiu novamente, agora em voz alta:
- «Esta lei decide que se pode fazer de uma maneira ou de qualquer outra.»
- Já sei!, - murmurou o Chefe - Já sei de que é que sinto falta. É uma percepção muito individual, reconheço, mas é isto: nesta lei trata-se de permitir fazer de uma maneira ou de qualquer outra - muito bem, mas a questão é: o quê? De que é que esta lei está a falar?
- Isso nunca se explicita - murmurou, com condescendência, o Auxiliar mais velho - deixa-se sempre a coisa ambígua, indeterminada. Fala-se de algo como se todos soubessem o que é esse algo. Eu não sei o que é esse algo, o Chefe não sabe, ninguém sabe, porém, pode ter uma certeza: a população gosta deste tipo de leis.
- Gosta?
- Claro que gosta. Poder fazer de uma maneira ou de qualquer outra? Há alguém que não goste deste tipo de imposições?
- Mas o que é que muda com isto - perguntou o Chefe - O que é que muda com: «Esta lei decide que esta lei não decide nada.»
- Não muda nada.
- Nada?
- Nada. Mas é o que a população quer.
- O que eu quero, sabe - exclamou o Chefe, no seu tom empolgado - o que eu quero é fazer tudo, tudo, pela população!
- Então, Chefe, não faça nada; eles não notam a diferença.