Da sorte
O que a sorte tem a ver com crucifixo de Santos ou com os idiotas da subjetividade...
Meu caro Fernando Santos
T ENDO morrido em 1980, Nelson Rodrigues continua a ser o mais fantástico cronista de futebol que a língua portuguesa tem - e foi ele que o descobriu (na argúcia da sua poesia):
- No futebol, o pior cego é o que só vê a bola.
Antes do Brasil chegar a campeão do Mundo (no Suécia-1958) já revelara:
- A pura, a santa verdade é a seguinte: qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: temos dons em excesso. Só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades: o nosso complexo do vira-latas…
Sim, nós sabemo-lo: hoje, o futebol é diferente. Diferente no sentido em que a fantasia, a improvisação ou a invenção já não ganham jogos por si só - mas o futebol continua igual no outro ponto: não há maior perdição que o complexo do vira-latas (a atormentar-lhe ou a apequenar-lhe o jogo - ou o jeito). Não, não tenho dúvidas: se consigo, a seleção de Portugal se tornou no que se tornou, deve-se a ter-lhe tirado (mais do que algum outro) esse complexo do vira-latas - continuando a fazê-lo. Apesar disso, não deixam de surgir pelos corredores da má língua (que vão das redes sociais aos paineleiros das televisões) idiotas da subjetividade (irmãos dos idiotas da objetividade do Nelson no seu avesso) a levar-lhe as proezas a outros sortilégios:
- É Deus no céu… É o crucifixo no bolso… É a leitaria... É sorte... só sorte!
Tenho de admiti-lo: sorte foi, sorte é! A sorte que dá trabalho, que custa suor e ainda mais esperteza. A sorte que não deixa que as dúvidas sejam traiçoeiras ou que os jogadores joguem a suspeitar da sua grandeza. E, além de outras, a sorte de conseguir pôr equipa ameaçada pelo destino a acreditar que sem chuva não há arco-íris levando, sempre dentro de si, aquela ideia famosa do Valdano:
- O futebol é sempre charmoso, se os jogadores o jogarem a pensar…