Começar 2021 com murro no estômago
O ano de 2021 começou com a entrada de Carlos do Carmo no Panteão dos Imortais. Recordo, a propósito desse grande belenense, uma conversa, em Paris, durante o Euro-2016, em que tive oportunidade de dizer-lhe: «Carlos, para mim, você é ‘A Voz’, o nosso Sinatra...», ao que ele me retorquiu, com aquele sentido de humor que temperava um amor próprio muito vincado: «Ó Zé Manel, não me diga isso, você até sabe que eu não sou nada vaidoso...»
Nessa tarde, num almoço de homenagem a Armando Lopes, alma mater da Rádio Alfa, pilar da portugalidade em França, onde marcaram presença Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, Vítor Serpa arrancou-lhe uma daquelas entrevistas que fazem parte do património do jornal A BOLA, (de dois gigantes só podia sair um pedaço de jornalismo irrepetível!). Mas a pequena história desse dia teve Marcelo Rebelo de Sousa como protagonista. Estávamos nós a terminar a refeição, e o Presidente da República, com compromissos inadiáveis, teve de sair mais cedo, e simpaticamente passou pela nossa mesa para um «adeus e até breve», formulando votos para que Portugal pudesse ir longe no Europeu de França. Nem cinco minutos depois, vimos Marcelo, em passo estugado, acompanhado por um séquito de seguranças portugueses e franceses, de ar atónito e desconcertado, a dirigir-se à mesa de Carlos do Carmo, onde apenas se demorou breves instantes. De novo a caminho da viatura oficial, o Presidente da República voltou à nossa mesa e explicou-se ao Vítor Serpa: «Sabe, já estava no carro pronto para arrancar e lembrei-me que tinha saído sem me despedir do Carlos do Carmo...»
Pois, Carlos do Carmo, belenense de gema por influência do pai, português excelentíssimo e cidadão do mundo, conquistador do Grammy, paladino do fado património imaterial da Humanidade, e cantor de poetas, despediu-se do corpo e passou a residir no imaginário de Portugal, que lhe deve canções que são a argamassa da nossa unidade. Em ‘Lisboa menina e moça’ os putos ‘parecem bandos de pardais, à solta’, enquanto que ‘em Alfama derramamos o olhar’ e antes de entrarmos na ‘canoa de vela erguida, que vem do cais da Ribeira’, compramos castanhas ‘quentes e boas, quentinhas’, e com elas ‘levamos mais amor para casa’. Obrigado Carlos. Até um dia.