Com Saramago

OPINIÃO12.04.202004:00

PUXEI-ME à janela e não vi o que os meus olhos viam no horizonte a desfazer-se em carmesins, vi na minha praceta a cidade inteira do Saramago a desembocar: quase deserta de gente e de luz. Vi o cego a perder a vista ao volante e o transeunte larápio, a pretexto de o ajudar a atravessar a rua, a roubar-lhe o carro. Vi o «ladrão de automóveis» a tentar violar a «rapariga dos óculos escuros» quando já estavam ambos no hospital psiquiátrico para onde os atiraram de quarentena (a eles e outros de modo a travar-se a epidemia do «mal branco»).  Vi, no jeito rufia que ela ganhara nos seus dias de «má vida», a «rapariga dos óculos escuros» a ferir o «ladrão de automóveis» na perna e ele a precipitar-se para o soldado que guardava o manicómio que era campo de concentração - e a ser morto por saraivada de balas (no que vi a cegueira no cumprir de ordens, que não era, afinal, a pior...)


Vi os «cegos malvados» nas suas velhacarias e o chefe como gorila a coberto de arma na mão. E, quando os «cegos malvados» saltaram aos olhos da minha imaginação em forma de vírus em coroa e picos - vi a «rapariga dos óculos escuros» a titubear num murmúrio:
- Já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos…


Vi, sacudida do medo, a «mulher do médico dos olhos» a entrar no manicómio (cega se fingindo) para salvar o marido que cegara também (e mais do que o marido), vi-a a varrer do fundo do poço arrogâncias e intolerâncias, a lutar contra monstruosidades e resignações. À «mulher do médico dos olhos», vi-a, por fim, armada pelo seu espírito e por uma tesoura de hastes abertas, a matar o chefe dos «cegos malvados». Já não vi a «mulher do isqueiro» a morrer, heroica, no fogo que ateara - ao deixar a janela, só levava dentro de mim a «mulher do médico dos olhos», desejando-a, dentro de nós, a fazer da vida o golo que temos de voltar a marcar como o Ronaldo, o drible que temos de voltar a  fazer como o Messi - no seu exemplo (e mais).