Coerência, conhecimento e confiança
1 Já percebemos que vai ser esta época uma Liga bem renhida. Muito renhida. Nos relvados, molhados ou não, e fora deles, secretamente orientados e cirurgicamente condicionados. Vai ser uma Liga em que poderemos falar de cobardia - «cobarde é o homem que numa emergência perigosa pensa com as pernas» (Ambrose Bierce) - e, acima de tudo, em coerência. E digo pensar com as «pernas» e não com os «pés». Que, por vezes, neste caso, é um grande dom! E a coerência é essencial em termos de disciplina e de arbitragem nestes tempos concretos e específicas circunstâncias do futebol português. Em que vivemos um tempo de transição entre o que existe e o que, a curto/médio prazo, existirá. Mas no que concerne ao apito o que é determinante é decidir, a e no tempo, e de forma equivalente, situações equivalentes. Marcar, no momento, e de forma equivalente faltas ou exibir, no instante, e de forma equivalente, os devidos cartões em lances antidesportivos. Bem sabemos que são decisões de homens concretos e em situações e circunstâncias bem específicas. Bem sabemos que «cada caso é um caso». Mas também sabemos que o mesmo homem concreto deve decidir de forma equivalente situações similares. Se ontem amarelou, hoje não deve vermelhar. Se ontem marcou falta, hoje, em situação equivalente, deve apitar e assinalar o castigo, mesmo que o VAR, ao contrário do que se potencia e anuncia, o não ajude nem esclareça acerca do exato local da dita infração. E a coerência exige, assim, um esforço volitivo permanente. E tal esforço é fundamental para que haja confiança. Sabemos que, por vezes, a «confiança é a mãe do descuido». Aceitemos certos descuidos. Mas diga-se que os descuidos não são realidades solteiras. Exigem responsabilidades. Determinam responsáveis. Já Jean-Paul Sartre escrevia que «não fazemos o que queremos e, no entanto, somos responsáveis pelo que somos: eis a verdade»! E, acreditem, recordei tudo isto ao rever o jogo de Chaves, os momentos do jogo - todos mesmo! - e algumas das decisões do árbitro, e seu coletivo, deste encontro. Ocupado na noite chuvosa de Chaves com um sugestivo colóquio em Abrantes acerca do desporto e da sua ética e envolvido numa noite de verão e no calor dos participantes só vi o jogo bem mais tarde. Já sabia o resultado, os momentos do jogo, as circunstâncias dos golos, as dificuldades do relvado, as lesões determinantes, os comentários e as declarações produzidas. Revi tudo, assim, utilizando o que as novas tecnologias permitem. Eu que ainda sou do tempo em que escutava as grandes penalidades no pequeno rádio a pilhas da bisavó Josefina ali na aldeia de Valflor, na Meda. E desse tempo até hoje houve várias revoluções. Mas nenhuma delas teve a ver com a palavra coerência. Esta continua a ter o mesmo significado. O mesmo conteúdo. A que acresce a permanente recordação das palavras, sempre atuais, do Padre António Vieira: «Muitos cuidam da reputação, mas não da consciência». E esta Liga, e nesta Liga, tem de haver consciência e coerência, permanente memória e forte reputação, esforço e respeito. E este respeito está bem acima, tem de estar bem acima, de qualquer estima pessoal. Tem a ver com a integridade da competição. Que para além de uma exigência é uma determinante necessidade. Uma urgente necessidade.
2 A Cidade do Futebol é um extraordinário espaço que junta o conjunto das nossas seleções, a estrutura federativa e agora, também, a Portugal Football Scholl. Junta futebol em estado puro com a motivação contemporânea para o conhecimento. E só se conhecendo se prepara e antecipa o futuro. E o futuro está a bater-nos à porta. Novas competições e com a FIFA a ambicionar organizar, inovadoramente, um campeonato mundial de clubes, ela que, até ao momento se dedicava, em exclusivo, às seleções nacionais. E com a UEFA a pensar numa terceira competição europeia de clubes, ao mesmo tempo que se equaciona, porventura em rutura, o acesso a tais competições combinando o mérito desportivo com o convite desportivo! E, ao mesmo tempo, refletindo-se acerca de uma taxa de luxo - nome interessante e motivador! - que limite estas disparidades que levam o PSG ou o City a ter dinheiro para tudo e outros a serem rigorosos cumpridores das estabelecidas regras do fair play financeiro. Sabemos com Umberto Eco que há o «desporto na primeira pessoa, o desporto ao quadrado e o desporto ao cubo». Vivemos bem, entre nós, este tempo do desporto ao «cubo». Em que a sociedade excitada em que nos movemos eleva o futebol a espaço dominador, a fenómeno motivador e a realidade mobilizadora. De fidelidades mas também de caprichos. Que não perturbam a liberdade - nem a arte de viver! - e a fidelidade mas que suscitam novas capacidades e outras necessidades. Nestes dias, sob a douta direção do Professor André Seabra - e com interessantes e enriquecedoras intervenções de Hermínio Loureiro e Tiago Craveiro - decorre naquele espaço extraordinário um Executive Course in Football Law”. A Cidade do Futebol, cada vez mais procurada por grandes empresas para ser igualmente um local de eventos corporativos, recebe, para além de muitos ilustres portugueses, juristas da Bélgica e de Angola, de Cabo Verde e da Coreia do Sul, da Arábia Saudita e do Brasil que procuram beber conhecimento acerca dos grandes temas do futebol e também das grandes questões do futebol europeu e mundial. Ali, nestes dias, há expansão do campo do conhecimento. E olhando para os relvados de uma Cidade que acolhe, com sentido estético, Taças que são a expressão do nosso orgulho coletivo percebemos que devemos dar conta deste novo valor que a Cidade do Futebol proporciona e potencia. E almoçando no refeitório habitualmente destinado à nossa principal seleção bebemos um pouco de um ambiente em que há atitude e vontade, esforço e inovação, liderança e criatividade, diversidade e entusiasmo. E o entusiasmo é sempre uma acrescida força da alma. E naquela Cidade há alma. Já que sempre nos disseram que «a carne nasceu escrava e a alma nasceu livre»!
3 Na noite da passada sexta-feira o Benfica, em livre Assembleia Geral, aprovou as suas contas. Mas, na diversidade de opiniões, sublinho o anúncio por parte do Presidente Luís Filipe Vieira da renovação do acordo por mais três anos com a Emirates. É, acreditem, um grande sinal. De confiança e de coerência. De reconhecimento da força e da grandeza da marca e, também, de uma cumplicidade que está para além dos abalos que doem e magoam.