Céu, Cave e Milagres
Método
1 É uma brincadeira de crianças - disse o senhor Kraus. Quando o político nos fala do céu, e aponta o dedo para o alto dizendo, vêem?, é aí, nesse momento, que devemos olhar atentamente para os objectos que ele guarda na cave.
Parque de estacionamento
2 Tendo em conta a existência de inúmeras pessoas do povo, do clero, e até da nobreza, que nada entendem de motores ou de automóveis, o Chefe disse:
- Basta!
E depois de ganhar balanço avançou com a seguinte declaração:
- Basta!
- Isso significa...? - alguém perguntou.
- Significa que já chega - esclareceu o Chefe.
- Basta, portanto?
- Exactamente.
É que não lhe parecia suficiente a velha tradição democrática de oferecer carros de diferente qualidade consoante a posição hierárquica do sujeito.
Parecia-lhe importante que, à vista desarmada, mesmo um desconhecedor absoluto de marcas, qualidade de arranque e motor, pudesse distinguir um simples director geral de um ministro.
Foi por esta boa razão que recuperou o elogio ao modo não poluente de as bicicletas se deslocarem no espaço da cidade.
- Bicicletas: conhece alguma tecnologia mais actual?
Deste modo, no parque de estacionamento destinado a elementos do governo havia agora lugar para: um automóvel, duas motorizadas, quatro bicicletas, nove cavalos; e ainda espaço para mais de vinte burros.
Como a boa norma do respeito hierárquico aconselha e, apesar da diferença de velocidade atingida nas rectas, os que vinham de burro, por hábito, chegavam primeiro.
Decisões legais, e outras
3- Sendo eu um ser humano, qualquer lei aprovada que prejudique um único homem, é uma lei que me per- segue individualmente. Pelo menos desta maneira a considero.
Foi assim que falou o solidário Chefe, que era muito agarrado à população - tanto mais que se tornara urgente acabar com os protestos constantes que começavam a surgir depois de qualquer alteração da lei.
É que, de facto, havia sempre um grupo de pessoas que se sentia prejudicado.
Os legisladores tentaram então criar uma lei que não prejudicasse ninguém, nem uma pessoa; mas não conseguiram.
Mesmo quando faziam leis sobre as árvores ou o vento, a coisa não resultava. Havia sempre protestos. E protestos humanos.
Mas o Chefe insistia:
- Façam uma lei que não prejudique ninguém, nem uma pessoa, nem um velhinho, nem um desgraçado. Já basta.
- Isso que nos pede não é uma lei, Chefe, é um milagre - disseram os auxiliares.
- E quem trata desse tipo especial de leis? perguntou, de imediato, o Chefe.
Caiu subitamente o silêncio na sala.
Os Auxiliares estavam embaraçados, notava-se. Ninguém sabia dar uma resposta concreta ao Chefe.
Lá ao fundo, no meio do silêncio e da imobilidade gerais, um dos novos Auxiliares lá se atreveu a levantar o braço.
- Diga, senhor Auxiliar aí do fundo.
- Chefe, eu não conheço todo o organigrama, mas se não há nenhuma secção do governo responsável pelos milagres, proponho que se crie uma.
- Excelente ideia, disse o Chefe, entusiasmado.
No entanto, pelo seu rosto de imediato se notou que a solução encontrada lhe levantava novas e profundas questões: haveria ainda, na folha A4 do organigrama, espaço para mais um departamento?