Campeões!
Ao contrário do futebol, cartão vermelho, no jogo da vida, só se vê uma vez
CONHECI a Adega da Tia Matilde ainda muito jovem, levado a esse popular restaurante de Lisboa pela mão do meu pai, a um jantar organizado pelo Clube Nacional de Imprensa Desportiva (CNID) para a entrega dos prémios anuais aos mais destacados dos nossos atletas. Se a memória não me atraiçoa (e já me atraiçoa muitas vezes), foi a Aurora Cunha que recebeu o prémio Atleta do Ano, estaríamos talvez a meio da década de 80, já a Adega da Tia Matilde era um dos restaurantes-referências de Lisboa e já Emílio de Andrade Júnior era um anfitrião de excelência.
Mais do que conhecer a Adega da Tia Matilde, conheci então essa grande figura, pois, que já muitos tratavam por Ti’ Emílio, e pude perceber rapidamente o impacto que tinha junto de tanta gente ligada ao desporto, em particular ao futebol, a tantos clubes, e, em particular, ao Benfica.
Pelos anos fora, pude ir percebendo o afeto paternal e a intimidade familiar que o ligava ao grande Eusébio, por exemplo, mas pude, também, ir testemunhando que se o Eusébio era grande, não menos grande era o Ti’Emílio, na humanidade, na bondade, na amizade, nas ligações afetivas que sabia criar em cada relação humana que estabelecia.
Não era um homem grande, o Ti’Emílio, era até relativamente baixo e anafado, é assim, pelo menos, que o vou recordar para sempre, com aquele ar simpático, mas simpático quanto baste, nunca demasiado simpático, e, de certa forma, com um lado bonacheirão, mas, ao mesmo tempo, circunspecto, de olhar prudente e ponderado, portanto, sem salamaleques, mas sempre com invulgar calor humano.
Não era um homem grande, mas não demorávamos muito a conhecê-lo como um grande homem. Dos que morrem é, diz-se, sempre o que é costume contar-se. Mas no caso do Ti’Emílio, garanto-vos, ele era um homem verdadeiramente tão bom, mas tão bom, que nunca deixava ninguém sem o coração um pouco mais cheio.
Só os homens verdadeiramente bons se ligam a tanta gente como se ligou o Ti’Emílio, e só a maldita pandemia lhe tirou os milhões de abraços quando chegou, em 2021, aos 100 anos!
Sou pai do Tomás. E no dia em que o meu filho nasceu, pelas 11 e picos de uma manhã de sol, ainda no verão de 2005, celebrei-o num almoço na Tia Matilde do meu querido Ti’Emílio, com um dos meus irmãos, o António, o mais velho dos quatro rapazes, e o Alexandre, um amigo de sempre e ex-velho camarada de jornal A BOLA.
O Ti’Emílio parecia quase tão feliz como eu próprio, e tão genuinamente feliz fez questão - desculpem a história pessoal - de oferecer o champanhe como bebida única para acompanhar o extraordinário repasto que mandou servir-nos para celebrar o nascimento do meu filho, num gesto de carinho como tantos outros, num restaurante, como poucos, onde comer sempre foi, realmente, também o partilhar de afetos, como se o Ti’Emílio recebesse, em sua casa, não clientes, mas apenas, e só, amigos.
Aprendi há muito que um homem é também o que são as suas memórias, e, por isso, aprendi também há muito a valorizar as memórias, porque são as memórias que nos enchem a alma, e sobretudo as memórias criadas com homens com a alma do Ti’Emílio, de quem nos despedimos esta semana.
Quando, há um ano, volto a recordar, o Ti’Emílio chegou à linda comemoração dos 100 anos de vida, tive oportunidade de escrever em A BOLA3D (plataforma digital dos conteúdos dedicados exclusivamente aos assinantes que gostam, realmente, de ler) como, durante anos, o Ti’ Emílio foi quase sempre falado por causa do Benfica, por causa dessa grande paixão pela chama imensa, por causa do grande Eusébio, seu grande protegido e espécie de filho adotivo, por causa das incontáveis amizades que o Ti’Emílio foi construindo no mundo do desporto e em particular do futebol, entre gente benfiquista, em especial, sim, mas também entre gente do Sporting, do FC Porto e de tantos e tantos clubes, porque o Ti’ Emílio nunca foi, na verdade, de virar costas a ninguém e muito menos às gentes do futebol, a quem sempre estendeu mão amiga, como ele dizia, «se vierem por bem».
Mas há um ano, o Ti’ Emílio foi finalmente falado por causa, apenas, dele próprio, pela excecional chegada aos 100 anos de idade, celebrados a 02 de abril do ano de graça de 2021. Cem anos jamais de solidão, mas cem anos - que chegaram a 101 - de uma vida imensamente rica.
Grande amigo de A BOLA - e grandes amigos ele fez na família de A BOLA -, o Ti’Emílio deixou-nos agora, e deixou-me, agora, triste, inquestionavelmente triste e mais pobre, não que tenha sido um dos seus mais íntimos amigos, porque não fui, apesar de toda a amizade que me dispensava, mas porque são pessoas como o Ti’Emílio que nos tornam a vida mais cheia de sentido e mais cheia de tudo o que a vida tem de melhor, de mais amizade e de mais amor.
Mas deixa-me, ao mesmo tempo, feliz, e justificadamente feliz por com ele ter partilhado tantos momentos que me enchem a memória, celebrando a vida imensa e intensa de um homem de quem não me despedi como gostava, porque a pandemia, sublinho, acabou por impedir que voltasse a sentir-lhe a ternura naquele olhar sorridente que sabia guardar para cada um dos melhores momentos.
«Embora não tenha feito o mundo, fiz uma aldeia e sinto-me muito bem dentro dela», disse, um dia, o Ti’Emílio, que descansa, a partir de agora, em paz.
Bem o merece!
PAULO JORGE DOS SANTOS FUTRE, Paulo Futre para o futebol, Futre para os imensos fãs, simplesmente Paulinho para os mais íntimos, ou apenas «campeão», como eu o trato há muito tempo, é dois anos mais novo do que eu. Nascemos no mesmo mês, eu a 9, ele a 28, e por mais um dia que tivesse demorado a vir ao mundo não teria este nosso «campeão» a sorte de poder celebrar o aniversário todos os anos. Conheço-o há muito, muito tempo - era ele ainda jogador júnior do Sporting, imaginem vocês... -, demasiado tempo, aliás, e já por demasiada vida, para a poder encaixar em meia dúzia de linhas de jornal. Digo apenas que tenho por este «meu campeão» uma amizade tão forte que nem precisamos de estar juntos muitas vezes para a sentirmos sempre tão sinceramente perto.
Confessou ele, há dias, ter apanhado um valente susto, que não o impediu, ainda assim, de brincar até, na linguagem do futebol, com o cartão amarelo que lhe foi mostrado e a vontade firme de evitar ver o cartão vermelho.
Esqueceu-se o «campeão», involuntariamente, está bom de ver, que também nos pregou um valente susto a todos nós, que o admiramos, e sobretudo a todos os que, como eu, o admiramos pelo que foi, mas também pelo que continua a ser, sobretudo pela alma boa que foi, é e será pela vida fora, uma alma muitas vezes difícil de domar, quase sempre difícil de domar, ele que me perdoe a expressão, difícil de domar até por ele próprio, agora tão assustado que promete deixar definitivamente a obsessão pelo cigarro, vendo que ele, o cigarro, o pode fintar, afinal, de modo bem mais cruel do que ele, Paulo Futre, simplesmente Futre, Paulinho ou «campeão», fintava os adversários, sem dó nem piedade, mas com o brilhantismo próprio dos mais talentosos, ou melhor, dos profundamente talentosos e genialmente mais predestinados como ele foi.
Ainda a meio desta semana, A BOLA TV voltou a dar-nos a oportunidade de o recordarmos como ele certamente mais gosta de ser recordado, pela magia que fez num campo de futebol. Neste documentário, tão belo como artesanal, que A BOLA TV emite, de novo, este sábado, a partir das 15 horas (imperdível, acredite-se!!!), podemos testemunhar como são verdadeiramente merecidos todos os elogios que lhe dispensam os que, como eu, o viram, tantas vezes, jogar, impressionar, encantar, fascinar, deslumbrar, maravilhar, arrebatar, entusiasmar.
Hoje, espero e desejo que este rebelde de coração tão grande, que sempre interpretou, quase como ninguém, o que deve ser uma estrela desportiva de classe mundial - humilde, apaixonado, dedicado aos adeptos, de relação humana simples e aberta -, um «campeão» que atingiu a dimensão que talvez ele próprio não consiga, ainda hoje, compreender plenamente, um ser humano incomensuravelmente alegre, que parece, porém, continuar a querer viver, por vezes, à velocidade com que atacava os adversários, espero e desejo, do coração, dizia, que o nosso Paulo Futre (sim, ele é de todos nós) não se esqueça que, ao contrário do futebol, o cartão vermelho, na vida, só se vê uma vez.
Um abraço. Vemo-nos por aí, campeão!
PS: Se Draxler renascer, na Luz, como renasceram Aimar ou Jonas, por exemplo, o Benfica terá garantido, ainda que por apenas uma época, ouro pelo preço da lata, como já o tinha conseguido o Sporting, com Sarabia. Bem que o merecem, neste caso, os adeptos da águia, depois da hilariante, absurda e inenarrável ‘novela’ que tanto desconsolo e angústia provocará, além dos adeptos, sobretudo no grande profissional que é Ricardo Horta!