Buraco tapado, mente tapada

OPINIÃO16.07.202004:00

A pandemia provocou uma crise financeira e económica com tal impacto que não deu tempo para rever modos ou estratégias. Quem luta pela sobrevivência perde a capacidade de refletir porque quando um barco está a afundar a prioridade é retirar a água e tapar os buracos e não pensar na qualidade do material desse mesmo barco ou se, no futuro, em vez de um bote o melhor não é optar por uma lancha.


A fase 0, chamemos-lhe assim, foi vivida em todas as atividades e no nosso futebol também. E correu bem: regresso autorizado dos jogos da Liga principal e um plano sanitário cujo cumprimento tem sido um sucesso, a ponto de não haver hoje um jogador que tenha medo de competir. Essa vitória ninguém pode tirar às autoridades de saúde, clubes, Liga e Federação - todos estiveram alinhados em manterem-se à tona.

Afase 1 seria a do planeamento: que rota seguir a partir de agora para fugir aos piores ventos e tempestades. Aí começaram a surgir os primeiros problemas. A confirmação da Taça da Liga na próxima época é um deles. Porque há um contrato com o patrocinador da prova, a Liga decidiu manter uma competição que não deveria ser considerada prioritária em tempos de exceção (porque é isso que vivemos e vamos viver na próxima época). Tal como foi lembrado por Sporting e Benfica (um parêntesis para elogiar uma raridade: apesar do tom acusatório, leões e águias produziram comunicados construtivos, pertinentes, que acrescentam em vez de subtrair), 2020/2021 será uma época com menos um mês de competição, os jogadores terão menos tempo de recuperação entre o final desta temporada e o da próxima e ainda há um Europeu para jogar - felizmente para a Seleção a maior parte dos jogadores joga fora do País.


Uma vez que não está prevista qualquer alteração do regulamento da prova, as equipas terão de se apresentar com muitos dos seus melhores jogadores. Se isso foi positivo para os três grandes no passado (e apenas para estes), porque conseguem ter plantéis mais ricos, na próxima temporada talvez isso não seja tanto assim e portanto tudo isto poderá vir a sair muito caro a todos - a grandes e a pequenos.

Afase 2 deveria ser a das mudanças de fundo, que é preciso fazê-las - a ideia é cada vez mais unânime na opinião pública. Não seria necessário um plano Marshall (ou um António Costa Silva), apenas alterações nos eixos fundamentais que já entraram na discussão daqueles que realmente querem um futebol melhor: direitos televisivos e quadros competitivos. A questão magna é que para conseguir mudar estes dois pilares é preciso correr Ceca e Meca. Veja-se o exemplo da Taça da Liga: há anos que é tida como prova secundária porque não oferece muito dinheiro nem um lugar europeu; o que se fez para mudar? Nada. Os grandes queixam-se todos os anos (geralmente é à vez, este ano será Benfica e Sporting) e os pequenos também porque esta é uma competição desenhada para os grandes e para a quarta melhor equipa - quase sempre o SC Braga.


Ora, se nunca houve massa crítica para mudar uma competição menor, temo que seja muito difícil levar por diante empreendimentos de maior envergadura. A participação dos grandes clubes em grupos de trabalho sobre mudanças dos quadros competitivos é interessante mas tem a mesma relevância de tantas comissões de inquérito no Parlamento: serve para entreter, mostrar serviço e empurrar com a barriga.


Sem intervenção superior (diga-se, do Estado, através de legislação própria) não acredito em muitas alterações na base. Com os clubes a regularem-se a si próprios nunca desaparecerá a clivagem grandes/pequenos (que para os grandes é uma falsa vantagem), nunca haverá uma Casa das Transferências, uma Comissão de Ética ou a figura do Provedor da Liga; nunca será permitido que um árbitro possa fazer 10 jogos do clube X só porque é o melhor. E por aí fora...


Pois se nem o nome popular da competição é transversal ou consensual (Liga, Liga 1, I Liga, Campeonato), imagine-se o resto.