Bendito Farense
Quem gosta de ver bom futebol ficou encantado com o magnífico comportamento do Farense na visita ao estádio da Luz, gerando infernal alvoroço no ninho águia e dando notável exemplo de uma capacidade competitiva que não só surpreendeu um Benfica de pouca inspiração como o enfrentou com personalidade e discutiu o resultado até ao derradeiro minuto.
Não conheço pessoalmente Sérgio Vieira, mas apreciei o discurso desenvolto, simples e atrevido, com que projetou o jogo, colocando o acento tónico na ambição de querer vencer numa casa onde, antes, outras equipas menos cotadas conseguiram ser bem sucedidas. Confessou ter detetado e analisado fraquezas no adversário que, naturalmente, iria explorar, contando com a infinda motivação dos seus jogadores, para eles um jogo muito especial por defrontarem um candidato ao título, num estádio imponente.
O Marítimo já batera na véspera o FC Porto, campeão em título, sem margem para discussão, de aí se admitisse como muito limitado o espaço para o Farense subscrever a segunda surpresa na mesma jornada, na medida em que o normal seria esperar um Benfica sem paciência para dar confiança a um opositor inferior, embora estranhamente posicionado no fundo da classificação.
O pensamento terá sido esse, mas a sobranceria que já tem barbas, e se mantém, aliada à fraca disponibilidade de alguns jogadores encarnados para correrem atrás da bola, lutarem com denodo pela sua posse e não terem receio de meter o pé, deve ter gerado natural incómodo em Jorge Jesus. Diria mesmo que este valente susto lhe caiu do céu por ter sublinhado que a instabilidade da equipa residirá menos na retaguarda, apesar de estar de acordo com ele quando reclama a contratação de outro defesa-central que pegue de estaca, até em função da venda de Rúben Dias ao Manchester City, e mais na desorganização do espaço intermédio, na largura e na profundidade, como o treinador do emblema algarvio sabiamente analisou, estudou e atacou, demonstrando que o coletivo encarnado continua a ser uma espécie de árvore de fraco tronco para segurar fortes ramos.
Como se deve ter reparado, o Farense tomou conta do meio campo, sempre. Foi ali que montou acampamento e que não só começou a defender a aproximação à sua baliza como instalou as suas peças para, através de manobras bem urdidas, alvejar a baliza contrária. O Farense bloqueou circulação aos encarnados tal como eles gostam de fazer, à vontade, como se estivessem na praia, e revelou outras particularidades igualmente extraordinárias: a de querer bola, de acelerar o jogo e de fazer pressão constante. Com essa ousadia desasou a águia, concentrou-a mais do que seria tolerável no seu meio campo e manteve-se teimosa e perigosamente próximo da área de Vlachodimos.
Tudo isto o pessoal de Jesus consentiu, com inacreditável despudor, ontem como tantas e tantas vezes na época que passou. Bendito Farense, pensarão os adeptos benfiquistas menos entusiasmados pelo andar da carruagem, por, à terceira jornada, ter mostrado à saciedade que o tempo não está para arrasar, nem para fanfarronices do género. Aliás, faz um ano, exatamente na jornada três do último campeonato, que o FC Porto jogou na Luz e Sérgio Conceição, com uma exercitação tática de cátedra, secou o futebol do Benfica, ao neutralizar-lhe as virtudes e expor-lhe os pecados. Como estes eram em maior número e não houve quem, na altura, tivesse a humildade de refletir sobre a lição e trabalhar na descoberta de novas soluções o resultado final foi o que se conhece.
As sirenes voltaram a ouvir-se na Luz. Com uma defesa acossada, desprotegida e em permanente sobressalto, só com centrais de três pernas poderá estabilizar-se a situação, mas não chega. Numa equipa sem o tal tronco, a frente ofensiva, independentemente da excelência dos executantes, viverá na dependência do que acontecerá nas suas costas: se olham para trás e vEem gente sua com quem dialogar ou se, como neste domingo, apenas vislumbram uma nuvem de adversários sem nada enxergarem além desse absurdo biombo. E, das duas uma, ou recuam para saberem por que motivo o jogo não flui, contribuindo inadvertidamente para o encolher ainda mais, ou mantêm-se nos seus postos sujeitos ao imprevisto, ao lance ocasional. À espera que passe por ali algum autocarro fora de horas. Desta vez passou…
O desabafo de Sérgio
No final do jogo com o Marítimo o treinador do FC Porto sentiu-se desiludido com as escolhas que fez e afirmou que «quem não for competitivo tem a porta aberta para sair, para deixar esta casa».
Do meu ponto de vista, a uma presença apagada portista correspondeu uma exibição inspirada maritimista. Portanto, culpados foram todos, sucede, mas a porta de saída apenas se abriu para Danilo Pereira e Alex Telles. Não acredito que o treinador não soubesse que iriam vestir pela última vez a camisola do dragão, mas num clube de tantos segredos também não garanto. Ambos rubricaram apagadas participações e Alex Telles nem converteu um pontapé de penálti, muito raro nele.
Uma coisa é o desabafo de Sérgio Conceição ter sido feito para a plateia ouvir, vincar a sua posição e não deixar nada por dizer, outra é o mesmo desabafo ter sido dirigido a quem tinha a porta aberta para sair, e saiu.
Não sei. Só sei que Sérgio é, hoje, treinador de sucesso e que, antes, foi jogador de reputação internacional.