As razões históricas, que se mantêm atuais, da importância do futebol para o desporto português
O que está a acontecer em Portugal com alguns clubes da Liga 2 e do CP é precisamente o que acontece com emblemas em situação análoga noutros países. Em causa, cá como lá, estão as decisões sobre subidas e relegações de Divisão, nos campeonatos que não puderam chegar ao fim, ficando provado, urbi et orbi, que é impossível agradar a gregos e troianos.
IMAGINE-SE que a via a seguir, procurando evitar confrontos, passava pelos alargamentos sistemáticos das várias Divisões. Assim, a Liga recebia Nacional e Farense e não descia ninguém: 20 clubes. Na Liga 2 não havia despromoções e subiam os primeiros de cada série do CP: 22 clubes. E no CP caberiam todos os que fosse preciso que coubessem. Este cenário permitiria menos protestos, mas mesmo assim todos aqueles que pudessem matematicamente subir de Divisão viriam, por certo, a terreiro, clamar pelos seus direitos.
MAS, para o futebol português, seria esta uma boa solução, quando a generalidade dos observadores aposta na melhoria qualitativa como forma de enfrentar o desafio da competitividade externa?
Está à vista de todos que os vários escalões do nosso futebol estão em overbooking, não temos país que sustente tantos clubes nas duas Divisões da Liga, muito menos podemos acomodar dois mil profissionais, a maior parte de faz-de-conta, nas nossas competições.
Há duas formas de lidar com a tremenda crise que temos em braços: ou claudicamos ao nacional porreirismo e hipotecamos o futuro; ou vemos no problema uma oportunidade e saímos mais fortes desta provação. Percebendo o drama de cada árvore que vai ficar queimada neste horrível incêndio da Covid-19, o bem maior deve ser a salvação da floresta. Por isso, e para isso, há que tomar decisões corajosas, que coloquem o interesse geral à frente do particular. Sem deixar desprotegidos os mais vulneráveis, mas cortando a direito.
Estes são tempos que reclamam lideranças fortes e credíveis, que possam absorver e ultrapassar as críticas dos descontentes. Daí que se perceba como coube ao dirigente com mais prestígio no nosso futebol, Fernando Gomes, o papel liderante deste processo. Nenhum outro, como ele, estaria preparado para apontar um rumo que nos devolva a ilusão de futuro, como aconteceu com o documento que o presidente da FPF publicou há uma semana. Centralizar os direitos televisivos, reduzir quadros competitivos e apostar, através da melhoria do produto, numa internacionalização que crie mais riqueza, são medidas que se tivessem sido aplicadas ontem, já iriam tarde; mas, aqui chegados, mais vale tarde que nunca.
O sistema desportivo português apoiou-se, historicamente, nos clubes, que foram sempre o motor do seu desenvolvimento. Em todos os grandes emblemas nacionais está presente a ideia de ecletismo, ao contrário do que sucede com os principais clubes no estrangeiro e isso tem a ver com o modelo de cada país: em Portugal o Estado demitiu-se do fomento do desporto, delegando, oficiosamente, essa tarefa nos clubes, daí serem estes tão diferentes dos homólogos estrangeiros. Querem uma comparação com os nossos vizinhos espanhóis? O Barcelona é o que mais se aproxima do modelo nacional, com 12 modalidades e o Real Madrid, além do futebol apenas aposta no basquetebol. Os nossos principais clubes chegam a ter mais de 50 modalidades cada.
Tem sido dito amiúde que, entre nós, o futebol é a mola real de cada clube e isso corresponde à verdade. Por isso, neste desporto português com tantos vícios de forma, deixado ao deus dará, em meios e projetos, pelo Estado Novo, e sempre visto como uma espécie de patinho feio nos governos da Democracia, onde recebeu estatuto de despesa e não de investimento, zelar pela sobrevivência do futebol é, simultaneamente, garantir que a estrutura que suporta o desporto nacional se mantém de pé.
Aparece por aí muito pateta, especialmente aqueles oriundos da política que caíram de paraquedas nos temas do desporto, que bradam contra o apoio ao futebol com o furor de um Torquemada, sem que nunca lhes tivesse passado por aquelas cabeças vazias de ideias, que tem sido o futebol, desde tempos imemoriais, a servir de locomotiva a um desporto português órfão do Estado.
Querem evitar um cataclismo sem precedentes no desporto português? Ajudem os clubes, que têm no futebol a mola real, porque sem eles o desporto no nosso país ruirá como um castelo de cartas.
A vinte dias do kickoff da Liga, e quando vão tomando forma outras competições por essa Europa fora, com a Bundesliga à cabeça, algumas ideias ventiladas no estrangeiro podem ter aplicação prática entre nós. Por exemplo, em Inglaterra fala-se na possibilidade de punir, com perda de pontos, os clubes que tenham adeptos nas proximidades dos estádios onde joguem à porta fechada.
Compreendo a paixão pelos clubes, consigo até antecipar o rombo nas contas das claques, provocado pela ausência de venda de bilhetes para os jogos, pela impossibilidade de funcionarem como agências de viagens, e até por todas as compras e vendas subterrâneas adjacentes que ficam por fazer, mas não é admissível que os protocolos de saúde pública sejam postos em causa por ações tão irracionais quanto ir para as cercanias de um estádio, sem outro motivo do que realizar alguma transação ocasional ou fazer prova de vida.
ALIÁS, se a ideia transmitida pelo primeiro-ministro António Costa aos clubes, e tornada pública pelo presidente do Sporting, Frederico Varandas, de que ao longo da próxima época poderia haver apenas 25% de ocupação nos estádios (e devo confessar que esta hipótese é, a meu ver, otimista, inclino-me mais para uma temporada de 2020/2021 à porta fechada…) for levada à prática, quem terá direito aos bilhetes? Que critérios seguirão os clubes, se na Luz só pudessem entrar 15 mil e no Dragão e em Alvalade 12.500? Dar-se-á prioridade aos sócios mais antigos? Ou aos que têm bilhetes mais caros? Ou estabelecer-se-á um regime de roulement umas jornadas para uns e umas jornadas para outros? E, no meio disto tudo, onde ficam as claques?
Como se percebe facilmente, os próximos tempos vão ser férteis em desafios novos, que irão requerer farta imaginação e bom senso constante, num caminho que se irá fazendo, caminhando.