As incompatibilidades no mundo do desporto
Estimada Assembleia da República, aguardo resposta a questões que derivam desta preciosa intervenção, partindo da sua narrativa
Quando a lei estabelece uma incompatibilidade cria sempre uma limitação à autonomia pessoal de alguém, pois veda-lhe o acesso a uma atividade, entidade ou órgão. Tal restrição surge justificada pela necessidade de, ponderados os interesses envolvidos, desde logo o público, se revelar negativo que esse alguém desempenhe, em simultâneo, duas ou mais funções, potenciando-se dessa forma canais intrusivos nessas atividades e eventuais conflitos de interesses.
Citando decisão do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 473/92), «a incompatibilidade, como tal é gerada por uma axiologia do interesse público, que no modelo constitucional português não se pode alhear do princípio do estado de direito democrático; a incompatibilidade é aferida por lei, ou seja, só existe na medida em que esta a prevê; a incompatibilidade é, por natureza, limitativa».
O deporto, em face da ampla legislação desportiva, não escapa à determinação de situações de incompatibilidade.
O ponto de partida é o estabelecido na Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, seu artigo 39.º: a lei define o regime jurídico de incompatibilidades aplicável aos agentes desportivos.
Como ler esta norma? Em primeiro lugar, a referência à lei não significa que haja um texto único que congregue todas as possíveis situações de incompatibilidade. O que aqui se afirma é que elas têm de ser previstas em lei, mas não necessariamente numa lei especialmente dedicada ao tema. E é, como veremos adiante, o que se passa, pois as incompatibilidades têm que ser visionadas em diferentes textos legislativos. Por outro lado, a menção a agentes desportivos é bem abrangente, alcançando praticantes, técnicos, agentes de arbitragem, dirigentes, etc. Indiquemos, pois, as principais notas legislativas sobre as incompatibilidades desportivas.
A primeira menção vai para a Lei n.º 112/99, de 3 de agosto (Aprova o regime disciplinar das federações desportivas), pelo menos parcialmente revogada, mas não nesta vertente. Aí o alvo são só os árbitros e, por isso, nessa já longínqua data, foi muito contestada. Num misto de impedimentos e incompatibilidades, o artigo 8.º dispõe sobre a proibição de certas atividades, quando estamos perante competições de natureza profissional, cobrindo até os titulares da APAF: realizar negócios com clubes ou outras pessoas coletivas que integrem a federação em cujo âmbito atuam; ser gerente ou administrador de empresas que realizem negócios com as entidades referidas na alínea anterior ou deter nessas empresas participação social superior a 10% do capital; desempenhar quaisquer funções em empresas nas quais os dirigentes dos clubes detenham posições relevantes. Qualquer infração a estas proibições, é sancionado com suspensão do exercício de todas as funções desportivas ou dirigentes, por um período a fixar entre 2 e 10 anos.
«Esta intervenção legislativa é a prova de que o Estado navega ao sabor de vento aleatório»
Segue-se o bem importante artigo 49.º do regime jurídico das federações desportivas. De acordo com ele - sem prejuízo de exceções que adianta - é incompatível com a função de titular de órgão federativo: a) o exercício de outro cargo na mesma federação; b) a intervenção, direta ou indireta, em contratos celebrados com a federação respetiva; c) relativamente aos órgãos da federação ou da liga profissional, o exercício, no seu âmbito, de funções como dirigente de clube, sociedade desportiva ou de associação, árbitro, juiz ou treinador no ativo (assim dificilmente se compreende a composição da direção da LPFP).
Um outro registo prende-se com outro tipo de organização desportiva, a sociedade desportiva, cujo regime jurídico consta do Decreto-Lei n.º 10/2013, de 25 de janeiro.
Aí domina o artigo 16.º:
1 - Não podem ser administradores ou gerentes de sociedades desportivas:
a) Os titulares de órgãos sociais de federações ou associações desportivas de clubes da mesma modalidade;
b) Os praticantes profissionais, os treinadores e árbitros, em exercício, da respetiva modalidade.
c) Quem possua ligação a empresas ou organizações que promovam, negoceiem, organizem, conduzam eventos ou transações relacionadas com apostas desportivas.
2 - Aos gestores de sociedades desportivas aplica-se igualmente o regime das incompatibilidades estabelecidas para os demais dirigentes desportivos na lei geral e em normas especiais, designadamente de caráter regulamentar, relativas à modalidade a que respeitam.
Recentemente a Assembleia da República alterou o Estatuto dos Deputados. De acordo com o artigo 2.º da Lei n.º 53/2021, de 12 de agosto, o artigo 20.º, n.º 1, alínea r daquele Estatuto passa a prever a integração, a qualquer título, de órgãos executivos de entidades envolvidas em competições desportivas profissionais, incluindo as respetivas sociedades acionistas, como incompatível com o exercício do mandato de deputado à Assembleia da República. Aqui o centro das atenções são os deputados, mas tem um reverso desportivo. No fundo, a Assembleia da República entendeu que não era adequado às funções de deputado uma certa ligação ao mundo do futebol, que é onde existem competições desportivas profissionais. A nova norma só entra em vigor num futuro afastado.
Esta intervenção legislativa é bem a prova de que o Estado navega ao sabor de um vento totalmente aleatório e junta-se a tantas outras, dentro e fora do universo desportivo, onde ninguém usa um tempo sereno, uma velocidade reduzida no pensamento, antes de decidir. É um impulso, um emprenhar pelo ouvido, por mais que se desgoste da expressão. E já está! Alguém estuda a coerência dessas sucessivas respostas que se vão sobrepondo? Com que lógica e unidade se criam incompatibilidades, também no mundo do desporto? Estamos cientes de que diferentes situações hão de merecer respostas diferenciadas, mas daí ao cada um toca o que sabe vai uma enorme distância. Faltam maestros para a orquestra.
Estimada Assembleia da República, aguardo resposta a questões que derivam desta preciosa intervenção, partindo da sua narrativa: órgãos executivos de entidades envolvidas em competições desportivas profissionais. Que entidades são estas? É a Direção de qualquer liga profissional, mas também da federação da respetiva modalidade? É o conselho de administração e os gerentes das sociedades desportivas? O que quer dizer «incluindo as respetivas sociedades acionistas»? Acionistas de sociedades desportivas? É isto mesmo que se quis?