As catacumbas da estupidez

OPINIÃO18.04.202004:00

O ressurgimento da Quinta da Bola, embora em formato caseiro, trouxe-me como se fosse  um cheirinho a alecrim no desejo de regresso ao que hoje se convenciona chamar de normalidade. Foi o princípio de um recomeço e muito embora acompanhe vivamente as recomendações de que não podemos estragar o que tanto nos custou a conquistar durante este tempo de confinamento domiciliário, não deixo de dizer que estes pequenos sinais que vão surgindo, mesmo que nos deem uma sensação de desesperante lentidão, tornam-se motivadores e capazes de renovarem a esperança de um maio com cheirinho a liberdade. Eu bem sei que o que não faltam são sofredores nestes tempos de nevoeiro e que cada um de nós haverá de ficar marcado, cada qual à sua maneira, por este pesadelo universal, mas não consigo imaginar nada de mais terrível, de mais dramático na história do jornalismo e, muito especialmente, do jornalismo desportivo.


Eu aprendi a fazer jornais no chumbo das tipografias, convivendo com a fantástica sabedoria operária dos tipógrafos, adaptei-me ao offset, à informatização, à dolorosa transição das tipografias para as gráficas. Acartei, pelo mundo, com máquinas de escrever que, mesmo portáteis, eram de ferro, conheci o ritmo suave dos teclados das máquinas elétricas, entrei, sem me perturbar, pelo glorioso mundo do digital. Não esperava, isso não, ver fazer jornais a partir da casa de cada um.
Para mim, o telejornal era o jornal da televisão e não qualquer jornal feito por jornalistas confinados. Aliás, nós, os jornalistas dos jornais desportivos, fomos, muitas vezes, os únicos jornalistas que nos podíamos gabar de fazer um jornalismo puro, feito no lugar onde as notícias aconteciam, muito diferente dos jornalistas das pesadas redações generalistas que se tornavam funcionários noticiosos, lendo e cortando telexes, revendo faxes oficiais, contactando o mundo sem se dignarem a levantar os rabos da secretária.


Nós andávamos pelo mundo. Percorríamos países exóticos, descobríamos culturas diferentes, povos diversos. E contávamos o que víamos, sem nunca nos perguntarmos, nem uma vez sequer, se o jornalismo desportivo era diferente do jornalismo generalista. Nós é que éramos os verdadeiros generalistas, porque contávamos aos leitores como era a vida e a paisagem que os portugueses, na sua esmagadora maioria, desconhecia. E como era a liberdade, no tempo em que o país em suspenso, nas palavras de Miguel Real, ainda esperava, angustiado e triste, pela chegada de D. Sebastião.


Peço licença de dizer, sem falsa modéstia, que A BOLA contribuiu mais do que qualquer outro jornal, por digno que fosse, para a afirmação da língua portuguesa no mundo e para a relação fraterna e amiga entre os povos que falam e pensam em português.


Como, certa vez, escreveu Pablo Neruda, confesso que vivi. Vivi uma época de ouro de um jornalismo desportivo épico, mas que por alturas dos anos de 1974 e 1975 também foi considerado, por um bando de tecnodemocratas intelectuais, recém-formados na política da conveniência, um género menor de jornalismo. Espero que, ao menos a isso, não tenha de assistir no que seria um penoso regresso às catacumbas da estupidez desses anos setenta.


Mas ainda estaria para chegar uma prova inimaginável de ver fazer um jornal a partir de cada casa, e sobre um tema que, entretanto, foi metido num congelador do tempo. Imaginam, ao menos, o que há de heroico em todos os jovens jornalistas que diariamente lutam pela sobrevivência de um jornal e da sua paixão?