‘Annus horribilis’

OPINIÃO17.11.201800:21

É uma expressão latina que significa ano horrível, como é quase óbvio, mesmo para quem nunca estudou latim. Para ser sincero devo dizer que não sabia a origem da expressão e, por isso, fui à internet averiguar o que agora partilho com os leitores que desconheçam. Diz-se que a expressão foi utilizada pela primeira vez em 1891 numa publicação anglicana, com referência ao ano de 1870, que foi o ano em que a Igreja Católica Romana definiu a infalibilidade papal. Nos anos noventa, mais concretamente em 1992, de novo a expressão foi usada, agora pela Rainha Elizabeth II, no discurso que proferiu em Guilhall, por ocasião do 40.º aniversário da sua ascensão, ano que ela descreveu com o um annus horribilis: «1992 não é um ano em que olharei para trás com prazer não diluído. Nas palavras de um de meus correspondentes mais simpáticos, acabou-se tornando um annus horribilis». Mais recentemente, em 2004, Kofi Annan, então Secretário - Geral das Nações Unidas, usou a mesma expressão, numa conferência de imprensa no final desses mesmo ano: «Não há dúvida de que este foi um ano particularmente difícil, e estou aliviado que este annus horribilis seja chegando ao fim.» E não pararia aí o horribilis desse ano, pois alguns dias depois ocorreria o mortífero tsunami no Oceano Índico.


Este ano de 2018, será certamente, para qualquer sportinguista, o annus horribilis da nossa história de cento e doze anos. Depois disto, só mesmo um tsunami, mais destruidor ainda que o furacão que passou por Alvalade. Depois da tempestade a bonança, mas creio que esta ainda vai levar algum tempo a chegar. Na verdade, o vento forte ainda sopra, e quando lhe pergunto por novas do meu clube, como Manuel Alegre perguntava ao vento de Portugal, ele, como o da ‘Trova do vento que passa’, cala a desgraça e nada me diz!...


Como percebem, não vejo a luz ao fundo do túnel indicadora da chegada da paz ao meu clube de sempre e para sempre. Resta-me, no entanto, a esperança fundada na resistência de uma massa associativa que tomou nas suas mãos a resolução dos problemas, assumindo com dignidade os seus erros, e, espero que também tenha a humildade de reconhecer que os erros são de todos nós. Eu, por mim, já o assumi, e resta-me olhar para frente, designadamente, para as grandes questões que se colocam ao meu clube, que não deixam de ser as que se colocam ao futebol nacional.


Com efeito, era bom que se deixasse para a justiça os vouchers, os mails, as toupeiras, Alcochete e outros temas, e discutíssemos o futebol e o seu futuro que está aí à porta. Nós, os homens do futebol temos de tratar dos assuntos que dizem respeito ao futebol, como gostaríamos que o país politico tratasse da justiça, sem olhar aos casos mediáticos, antes indo ao fundo das questões, sem complexos e, sobretudo, com sentido de Estado e patriótico. O que está a acontecer com esta excessiva mediatização da justiça é a revelação de um país voyeurista, que segue os casos da justiça com a mesma sofreguidão com que devora o ‘Big Brother’! Será isto inevitável?


Em Agosto deste ano, completei 38 anos sobre a data em que, pela primeira vez, tomei posse como dirigente do Sporting Clube de Portugal - Vice Presidente para o Secretariado Geral. Mais tarde, 1982-1984, viria a ser de novo Vice-Presidente, e de novo com João Rocha, mas agora com o pelouro das relações externas. Não interessa agora, o resto do meu curriculum na área do desporto, até aos dias de hoje.


No mesmo mês de Agosto deste ano de 2018, completei quarenta e seis anos de advocacia. Na verdade, em 3 de Agosto de 1972, então com vinte e cinco anos de idade, inscrevi-me na Ordem dos Advogados! Cheio de força e sobretudo de ilusões. A ilusão de que a justiça era realmente administrada em nome do povo e para o povo; a ilusão de que os tribunais asseguravam a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; a ilusão da repressão da violação da legalidade democrática; a ilusão que todos têm direito à liberdade e à segurança; a ilusão do direito à presunção de inocência; a ilusão de que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus interesses; a ilusão de que que a lei assegura a adequada proteção do segredo de justiça; a ilusão que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável; a ilusão de que um dia poderia viver num Estado de Direito. Ao fim e ao cabo, todas as ilusões que a revolução de Abril, menos de dois anos depois, me trouxe e consagrou na Constituição da República!


Oito anos depois dessa inscrição, que viria a ser a partida para uma profissão que vivi com paixão, e que hoje pouco mais é que um modo de vida que encaro com muita desilusão, e, por vezes, com amargura. E, em 1980, já desiludido com a politica, que me viria a desiludir mais ainda, resolvi seguir um caminho ligado ao dirigismo desportivo, onde viria a conhecer, e a viver, o muito bom que o desporto, e o futebol em particular tem. Conheci muitos dirigentes dedicados, benévolos, sem qualquer interesse que não fosse o de servir o seu clube. Para não falar dos técnicos e dos praticantes. Fiz amigos, ganhei muitos amigos e já perdi alguns - demasiados - que foram meus amigos e com quem muito aprendi. Nada mais será como dantes, e isso entristece-me, sem prejuízo de continuar a viver alguns bons momentos que, apesar de tudo, ainda existem!


Dirão os meus caros leitores que as minhas linhas hoje traduzem um estado de pessimismo e depressão. Talvez tenham alguma razão, porque há algum tempo, mas particularmente neste ano - neste ano horrível - as duas vidas da minha vida, embrulharam-se num conflito que me desilude diariamente.


No que à justiça respeita, o meu Pai avisou-me, quando, no final do meu curso, me dedicou uns versos que terminavam assim:
Meti-te neste sarilho,
Tu desculparás, meu filho.
Direito-Legislação
Tem cunho, tem atracção,
Mas quando passar’s à liça
E conhecer’s a Justiça…
Confia na ilusão!

Já não confio na ilusão da justiça ou do desporto, e muito menos na mistura. Resta-me a palavra de alento de Manuel Alegre:
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.