Alguns comentadores e as suas certezas
Devemos falar para que os outros nos ouçam e compreendam e, principalmente, permitir-lhes que falem
A O iniciar há uns anos os meus estudos filosóficos, deparei com as seguintes afirmações: «A Filosofia não descobre factos desconhecidos. Tenta, sim, fazer despertar o que se encontra adormecido nos factos pretensamente conhecidos desde sempre.» (Cornelius Castoriadis, Dizível e Indizível, 71); e «O filósofo… é um eterno iniciado» (Thomas Baldwin, Maurice Merleau-Ponty basic writings, 70).
Para quem fazia das suas certezas um suporte decisivo, imaginem a minha confusão! Naturalmente, hoje, sempre que ouço rádio, leio jornais ou assisto a programas televisivos, reajo perante o mundo de certezas irrefutáveis de alguns comentadores.
Maturana e Varela na sua obra «A árvore do conhecimento», (página 60), dizem-nos que, «tendemos a viver num mundo de certezas, de uma percetividade sólida e inquestionável, em que nossas convicções nos dizem que as coisas são de maneira como as vemos e que não pode haver alternativa ao que nos parece certo.» Acrescentando (página 61) «este livro pode ser visto como um convite a resistirmos à tentação da certeza.» Esclarecendo ainda que, «toda a experiência de certeza é um fenómeno individual, cego ao ato cognitivo do outro, em uma solidão que, como veremos, é transcendida somente no mundo criado com esse outro.»
C ONVIDAM-NOS, assim, estes autores, a pensar filosoficamente, esclarecendo que para o conseguirmos, não basta possuir determinadas condições para o fazer; a filosofia obriga-nos a não articular simplesmente opiniões acerca do que já foi dito e pensado anteriormente; impõe-nos acima de tudo usar essas condições para sermos capazes de pensar de modo criativo e inovador. Estando sempre atentos, vendo quanto possível tudo e não só olhando, fazendo quantas perguntas sejam necessárias como se estivéssemos sempre numa continuada partilha e aprendizagem. No fundo, esclarecendo e clarificando as nossas atitudes e comportamentos através de uma constante preocupação com os outros; conseguindo ser emocionalmente convincentes e ao serviço de um todo que nos transcenda e cujos objetivos comuns mobilizem a nossa motivação e capacidade de superação.
C ONFORME já aqui o dissemos, nos tempos de hoje, não só está demonstrada a importância da emoção sobre a razão, como também dos vínculos sociais sobre o individual. Precisamos da relação com os outros para sermos quem somos. Treinando os nossos comportamentos quanto possível, com índices elevados de rigor e exigência; sem nunca esquecer que só praticando repetidamente um determinado comportamento conseguiremos que ele se perpetue no tempo.
Se queremos verdadeiramente mudar, temos assim de ser capazes de nos debruçar sobre nós próprios, conhecermo-nos e fazer o máximo com o que somos. Perceber, afinal, que ao relacionarmo-nos com tudo o que nos rodeia, a primeira grande dificuldade somos nós e o modo como comunicamos. «A mensagem somos nós», o nosso corpo, os nossos gestos, a nossa cara, o modo como olhamos e para onde olhamos. O que significa que, quanto possível, devemos falar para que os outros ouçam (compreendam) e, principalmente, permitir-lhes que falem, manifestando as suas preocupações e ajudando-nos a ser capazes de nos colocar no seu lugar.
Melhor ainda! Necessitamos deixar de esconder-nos atrás do habitual já lhe disse, sem primeiro verificar se compreenderam o que pretendíamos expressar. Está hoje suficientemente demonstrado não ser mais possível um pai, um professor ou um treinador dizer, «eles não estão motivados», ou «eles não se empenham», sem primeiro se interrogar «o que será que não estou a fazer ou a dizer, que não lhes consigo mobilizar a motivação ou que se empenhem?!...»
N ÃO estamos, assim, perante uma questão de saber o que temos de fazer, mas sim de fazer e de comunicar com impacto e de forma emocionalmente convincente e mobilizadora, mantendo permanentemente aqueles a quem nos dirigimos, focados e concentrados nos objetivos a alcançar; o que nos exige, naturalmente, desenvolver um esforço constante para nos mantermos entusiasmados e esforçados ao serviço da mobilização da motivação daqueles com quem nos relacionamos.
Maturana e Varela em «Àrvore do conhecimento» (páginas 65, 66 e 67), dando como exemplos o modo como habitualmente vemos a cor, começam por nos dizer que, «devemos parar de pensar que a cor dos objetos é determinada pelas características da luz que recebemos deles», acrescentando que, «os estados de atividade neural que são desencadeados pelas diferentes perturbações em cada pessoa são determinados pela sua estrutura individual e não pelas características do agente perturbador.» Mais à frente acrescentam que «a nossa experiência está indissociavelmente amarrada à nossa estrutura. Não vemos o espaço do mundo - vivemos nosso campo visual. Não vemos as cores do mundo - vivemos nosso espaço cromático».
Resumindo, «não podemos separar nossa história de ações - biológicas e sociais- de como nos parece ser», tal como «não temos outra alternativa, pois o que fazemos é inseparável da nossa experiência do mundo», tendo que abandonar «a atitude habitual de estampar sobre nossa experiência um selo de algo inquestionável como se refletisse um mundo absoluto».
Maturana e Varela são de opinião que temos, de um modo geral, imensas dificuldades em nos conhecermos e compreendermos. O que provoca com bastante frequência um desconhecimento dos nossos próprios comportamentos. Pior ainda, tendemos para abolir a nossa responsabilidade pessoal e optamos por atribuir aos outros a culpa de tudo o que vai acontecendo.
Como ponto de partida, o facto de muitas vezes sermos responsáveis pelo aprofundar das divergências com que nos confrontamos. Razão porque nestes últimos anos, procurei aprofundar quanto possível, a complexa questão inerente ao nosso comportamento.
E STÁ hoje perfeitamente demonstrado que todos possuímos um altruísmo biológico natural, que nos provoca a necessidade de fazer parte de grupos humanos e de operar em consenso com eles. Acrescido ainda que todos temos uma enorme capacidade, não só de autotransformação, mas também de transformação da realidade em que vivemos. Ou seja, mesmo quando, como é o caso, assim não parece, somos seres sociais e sociáveis capazes de ajudar e partilhar. Por isso mesmo, deveremos registar o que Maturana e Varela nos transmitem quando (repito) nos alertam (página 60) que «tendemos a viver num mundo de certezas, de uma percetividade sólida e inquestionável, em que nossas convicções nos dizem que as coisas são de maneira como as vemos e que não pode haver alternativa ao que nos parece certo.» Acrescentando mais à frente (página 61), como também já o dissemos anteriormente, que «toda a experiência de certeza é um fenómeno individual, cego ao ato cognitivo do outro, em uma solidão que, como veremos, é transcendida somente no mundo criado com esse outro», sugerindo-nos que não temos outra alternativa senão a de abandonar «a atitude habitual de estampar sobre nossa experiência um selo de algo inquestionável como se refletisse um mundo absoluto.»
R AZÃO porque, sem invalidar o direito que cada um de nós tem à sua opinião, a nossa interpretação da realidade vale o que vale, conforme estejamos ou não envolvidos nos momentos extremamente pressionantes e complexos de tomar as decisões necessárias. Nenhum de nós, enquanto observador de determinados comportamentos ou acontecimentos, está liberto do peso emocional contido em cada uma dessas experiências. Muito menos ainda capaz de se libertar do já vivido e experimentado anteriormente e respetivo peso emocional e experiencial.
Conclusão, segundo Maturana e Varela somos de um modo geral cegos a nós próprios e, por essa razão, vermos o «nosso reflexo no espelho é sempre um momento muito peculiar», pois essa reflexão é um processo de conhecer como conhecemos, um ato de nos voltarmos sobre nós mesmos. Afinal, essa é «a única oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e de reconhecer que as certezas e os conhecimentos dos outros são, respetivamente, tão nebulosos e ténues como os nossos.»